Por Fábio Medina Osório
O desafio enfrentado hoje pelas corporações de capital aberto vai além das oscilações do mercado ou das questões legais que podem surgir. O verdadeiro perigo reside nas sombras: a deterioração da confiança, que se instala quando existe um descompasso entre o que é proclamado e o que é realmente praticado.
No século XXI, a reputação se consolidou como um ativo essencial. Embora não figure diretamente nos balanços patrimoniais, ela exerce um impacto significativo sobre o valor que o mercado atribui à companhia.
Este patrimônio intangível está no centro de uma nova estrutura organizacional: o complianceSubstantivo advindo do verbo to comply (agir de acordo, cumprir, obedecer). Estado de estar de acordo com as diretrizes ou especificações estabelecidas pela lei ou regras, políticas e procedimentos de... Saiba mais transformativo. Este conceito vai muito além de um mero conjunto de regras; trata-se de uma inteligência éticaConjunto de ações normativas que guia o comportamento de uma organização ou de um indivíduo, estabelecendo boas relações sociais. A ética é o estudo da moral. Saiba mais que permeia toda a organização, capaz de prever crises e proteger a legitimidade da empresa, fundamentando decisões estratégicas em princípios de integridadeConjunto de escolhas que estejam em sintonia com as crenças pessoais e os valores da empresa, prezando pela ética nas tomadas de decisões. Saiba mais.
A diferença em relação aos modelos anteriores de conformidade é marcante. Enquanto estes se limitavam a protocolos rígidos e relatórios automatizados, o novo modelo exige uma abordagem mais integrada, estratégica e humana. Ele se estrutura em torno de um compliance officerProfissional responsável pelo gerenciamento do programa de compliance , ou de integridade . Este profissional supervisiona e gerencia situações de compliance dentro de uma organização , garantindo , por exemplo... Saiba mais independente, com reconhecimento técnico e certificações internacionais, dotado de autonomia funcional e inserido nos conselhos de administração e na interlocução direta com o CEOChief Executive Officer (CEO): O Chefe Executivo da empresa, conhecido também como Diretor Executivo, Diretor Geral e Diretor Presidente ou Presidente. Saiba mais. O alinhamento entre integridade, reputação e decisões estratégicas passa a ser um critério de governança moderna.
No entanto, não se trata de exigir perfeição institucional. Empresas são compostas por pessoas, e erros são inevitáveis. O que diferencia uma organização madura é sua capacidade de reconhecer falhas com rapidez, agir com autenticidade nas relações com consumidores e stakeholdersPessoas ou grupos de pessoas com algum grau de envolvimento ou interesse em uma organização ou entidade, tais como empregados, clientes, fornecedores ou cidadãos que podem ser afetados por determinada... Saiba mais, e manter coerência com os valorescrenças julgadas corretas em relação a interações com outras pessoas ou empresas. Saiba mais que proclama no mercado. A velocidade na resposta e a legitimidade da reparação são os novos critérios de avaliação pública. A ética, nesse cenário, deixa de ser uma meta inatingível e passa a ser uma prática viva, perceptível e confiável.
Na prática, esse novo paradigma de compliance se revela em momentos decisivos. Diante de uma operação estatal iminente ou de um procedimento investigativo ainda embrionário, empresas que adotam o modelo transformativo são capazes de realizar diagnósticos internos ágeis e robustos, identificar os atores envolvidos, promover afastamentos imediatos e, sobretudo, buscar de forma proativa e coordenada um acordo com múltiplas instâncias reguladoras — antes que o litígio se consolide.
Isso permite à empresa assumir publicamente seus erros, demonstrar correção institucional e preservar sua legitimidade no mercado. O efeito simbólico e reputacional dessa reação precoce é incomparável ao modelo tradicional, que muitas vezes empurra a empresa para um enfrentamento judicial prolongado, com custos reputacionais e econômicos irreversíveis.
Além disso, o poder investigatório do compliance transformativo, ao se estruturar com autonomia, fortalece a vigilância ética sobre o ambiente concorrencial. Em setores altamente expostos à concorrência desleal, ele se torna um instrumento para identificar práticas abusivas, proteger sua integridade estratégica e até induzir mudanças regulatórias em defesa de mercados mais justos.
Esse modelo exige também sensibilidade cultural. O compliance global não pode se limitar à importação de códigos de conduta ou normas de matriz estrangeira sem aderência às realidades locais. A eficácia do sistema depende da integração com os valores e os códigos simbólicos da cultura organizacional em que está inserido, reconhecendo a diversidade jurídica, social e institucional.
Ao mesmo tempo, o mundo corporativo vive sob a regência de normas transnacionais — como as oriundas da OCDE(OCDE): no combate mundial à corrupção, a OCDE desempenhou papel importante pois seus Estados membros firmaram a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais... Saiba mais, FCPAA Lei de Práticas de Corrupção no Exterior norte - americana promulgada em 1977 , com dois principais grupos de disposições : um sobre pagamento de propinas a autoridades estrangeiras... Saiba mais, UK Bribery Act — que impõem padrões mínimos de integridade e transparênciaÉ o que se pode ver através, que é evidente ou que se deixa transparecer. É a virtude que impede a ocultação de alguma vantagem pessoal. Saiba mais, exigindo das empresas uma capacidade adaptativa e multilocal. O compliance transformativo, portanto, opera entre dois eixos: a internalização autêntica da ética e a aderência pragmática às exigências globais.
A formação contínua e o treinamento em compliance são igualmente essenciais para garantir que cada membro da equipe compreenda suas responsabilidades e o papel fundamental da integridade nas atividades diárias. Nesse cenário, a comunicação clara e transparente sobre diretrizes e expectativas é de suma importância para cultivar um ambiente onde todos se sintam à vontade para relatar comportamentos inadequados, sem temer represálias.
A tecnologia também é uma aliada valiosa na construção de uma estrutura sólida de integridade. Sistemas de monitoramento automatizados e ferramentas de análise de dados facilitam a identificação de irregularidades em estágio inicial, permitindo intervenções rápidas e eficazes. A implementação de soluções de compliance digital pode não só aumentar a eficácia das auditorias, mas também melhorar a rastreabilidade das ações empresariais, reforçando a confiança de todos os stakeholders.
Dessa forma, a infraestrutura estratégica da integridade vai além de um simples componente administrativo; ela se revela um diferencial competitivo significativo, protegendo e valorizando a empresa em tempo real. Isso não só beneficia a organização como também contribui para um ambiente de negócios mais ético e confiável.
* Fábio Medina Osório é advogado, ex-Ministro da Advocacia Geral da União e presidente do Instituto Internacional de Estudos do Direito do Estado.