Governança é um daqueles termos amplamente utilizado e frequentemente mal compreendido. Sua complexidade leva a definições imprecisas, abstratas e bastante abrangentes que, ainda assim, permanecem incompletas.

O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa criou uma definição muito utilizada: “um sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável para a organização, para seus sócios e para a sociedade em geral.”

Mesmo essa definição parece incompleta. Falta a ela considerar que esse sistema complexo está em constante interação com as diferentes conjunturas e é influenciado pelas mudanças ao longo do tempo.

Sem qualquer pretensão, considero governança um mecanismo chave para que um coletivo organizado de pessoas, agrupadas em organizações, administrem recursos que permitam atingir uma visão desejada em um contexto e tempo determinados. Nesta perspectiva, o cenário importa muito para a boa governança.

Nos tempos atuais, qualquer análise deve considerar a forte expectativa global com o avanço da Inteligência Artificial em todas as áreas de conhecimento, dada a sua recente popularização e incontestáveis progressos.

O ato de governar neste contexto é muito diferente. Deve reunir práticas que exigem efetividade, eficiência, agilidade e uma gestão de riscos inteligente. Deve ir além de administrar com autoridade e direção, ainda que de maneira correta.

Silvio Meira nos provoca em texto recente que a Inteligência Artificial transcende o status de mera ferramenta para se estabelecer como uma nova dimensão da realidade, impactando profundamente a arte de administrar e governar.

As organizações que já consideram a IA como uma tecnologia transformadora têm adaptado quatro aspectos fundamentais da sua governança: a visão estratégica, a liderança, o planejamento e o controle.

Em relação à visão estratégica, é importante considerar que a IA emerge como um agente de transformação, tornando concreto o que antes era apenas teórico — uma tendência apontada por Amy Webb para 2024. Essa dinâmica “do conceito à realidade” amplia a habilidade dos líderes não só de anteciparem o que está por vir, mas também de efetivamente imaginarem concretamente o futuro.

Com o auxílio da IA, é possível estabelecer visões de futuro mais consistentes, abrindo caminho para testar e aprimorar estratégias em simulações digitais antes de colocá-las em prática. Assim, objetivos antes impensáveis podem tornar-se visíveis e, consequentemente, realizáveis.

Desse modo, ao invés de se ater a práticas tradicionais e intuições ultrapassadas, a atividade core da governança – o estabelecimento da direção – pode basear-se em modelos preditivos e análise de dados avançada. Esta capacidade oferece aos administradores uma perspectiva mais abrangente, que pode tornar as instituições mais visionárias e pragmáticas, alinhadas com as expectativas de uma comunidade cada vez mais interconectada e dependente de soluções mais rápidas e efetivas.

Sobre os líderes, essas práticas requerem uma nova mentalidade e uma abordagem adaptativa, onde a inovação tecnológica é vista como uma alavanca para a melhoria, e não como um modismo ou um fim em si mesma. Para que os líderes possam compreender e utilizar o potencial da IA de forma eficaz e responsável, é imperativo desenvolver a sua destreza digital e, a partir disso, criarem diretrizes claras para testar e validar novas ideias.

Os líderes devem ser capazes de navegar no complexo ecossistema de algoritmos, dados e aprendizado de máquina, integrando essas ferramentas com processos adaptados à visão estratégica e as capacidades profissionais. A implementação de uma cultura que valorize o raciocínio humano em conjunto com os resultados orientados pela IA desafia os líderes a reavaliarem o processo de tomada de decisão e o próprio desenvolvimento de talentos.

Na dimensão estratégica, a IA atua como uma propulsora para o surgimento de novos objetivos e para o desenvolvimento de habilidades, produtos e serviços inéditos. As organizações devem agora se dedicar a revisões estratégicas contínuas, antecipando como a IA pode afetar suas operações, sua competitividade e seu desempenho. Abordagens antes estáticas ou lentas para evoluir devem ceder espaço para estratégias mais ágeis e flexíveis, que permitam reações rápidas às mudanças aceleradas pelo uso da tecnologia.

Quanto ao controle, a segurança cibernética e a proteção de dados ganham uma importância jamais vista. As organizações devem desenvolver sistemas robustos de conformidade e auditoria para assegurar uma utilização ética e segura da IA. A confiabilidade da IA em suas várias aplicações torna-se um pilar central para manter a confiança do público e dos stakeholders, assegurando a legitimidade das instituições.

Embora a regulação seja útil para o controle, ao estabelecer diretrizes para o uso ético e responsável da IA, seu impacto é atenuado por diversos fatores. Por exemplo, a extensão e aplicabilidade de futuras regras ainda são incertas e, mesmo que estejam claras no futuro, podem ser superadas pela velocidade da inovação tecnológica.

A regulação pode e deve servir como um marco principiológico, mas não como um manual absoluto de práticas. É crucial que as organizações desenvolvam um conhecimento aprofundado sobre as consequências éticas do uso da IA nas suas atividades, adotando práticas que vão além do simples cumprimento de normas e que enfrentem os desafios éticos e sociais emergentes da tecnologia de maneira intencional.

Não há uma fórmula mágica para essa transformação das práticas de governança. Todos esses desafios são muito complexos, e cada organização, departamento e equipe deve encontrar o seu próprio caminho para a maturidade digital.

As organizações que perceberem a relevância da IA e ajustarem a sua governança poderão, de maneira contraintuitiva e paradoxal, administrar valorizando profundamente o elemento humano. Isso será possível ao combinar visões estratégicas bem fundamentadas, que aproveitam os benefícios do uso da IA com uma gestão de riscos adequada.

Importante ressaltar que essa adaptação não implica em redefinir os princípios que definem a boa governança – transparência, responsabilidade e a proteção do bem-estar público – e sim, reforçá-los.

A nova governança transformada pela IA é chave para criar mais valor para os cidadãos e colaboradores, criando um futuro organizacional que exige audácia, colaboração e comprometimento contínuo com a sobrevivência e a relevância.

E o verdadeiro indicador de sucesso dessa nova era da governança corporativa não será medido apenas pela eficiência ou grau de inovação dos produtos ou serviços, mas também pela confiança e valor sustentável que se constrói no presente e para as gerações futuras.

 

Wesley Vaz – Auditor-Chefe de Governança e Inovação do TCU, professor da Fundação Dom Cabral e Global Ambassador da Singularity University – Capítulo Brasília. É autor e conferencista nacional e internacional em eventos sobre governança, estratégia, liderança, tecnologia, inovação e transformação digital. Possui certificado executivo em estratégia e inovação pelo MIT e mestrado em Ciência da Computação pela Unicamp.

 

Publicada originalmente no Jota

Publicado na CompliancePME em 15 de janeiro de 2024