Por Carlos Mauro

Fala-se muito sobre ética nas empresas e nos negócios, mas quase sempre de modo limitado ao comportamento operacional dos trabalhadores. Isso provoca uma importante confusão conceitual com a área de compliance, especialmente sobre o que é um comportamento antiético e o que é um comportamento que não está de acordo com regras operacionais ou com o código de conduta da empresa. É comum as pessoas assumirem que uma ação que não está em conformidade é necessariamente uma ação antiética. Essa assunção é um erro – um comportamento não implica o outro. Não podemos deduzir a ética do compliance.

A esperança de que as práticas de compliance derivem de um debate ético profundo é frequentemente frustrada. Em muitos casos, o discurso é de um tipo de moralismo típico de um tempo em que as pessoas insistem em declarar a existência de “cidadãos de bem”, “pessoas do bem” e “pessoas do mal”. Um moralismo que leva sistematicamente à formulação de juízos sobre a pessoa, e não sobre as ações e suas necessárias razões, causas, condições e circunstâncias.

Tenho tido contato com profissionais excepcionais de compliance que não têm a “síndrome dos cruzados marginais”, caracterizada pela crença de estar-se numa “guerra santa”, ser-se moralmente superior e ter-se licença moral para agir de modo intolerante, opressivo e antiético. Os portadores desta “síndrome” também têm a crença de que suas ações inconformes e antiéticas são sempre justificadas, contrariamente às das outras pessoas.

Infelizmente, há quem se enquadre na categoria dos “cruzados marginais”, que categorizam rápida e automaticamente um comportamento inconforme como um traço de caráter do agente, efeito de sua suposta “maldade”, indisciplina e de seus vícios.

Essa forma de pensar e essa prática de gestão dividem as pessoas entre as tais “pessoas boas e as más”, tirando o foco da própria organização, de suas decisões sobre metas e incentivos, das condições de trabalho e das práticas de gestão e liderança. Se quisermos ter um papel ativo na avaliação ética teremos de levar em consideração fatores que vão muito além das regras de compliance, dos códigos de conduta e das crenças moralistas. Não podemos fazer escolhas à la carte de teorias morais que, a depender do interesse momentâneo, são utilizadas para “condenar” ou “absolver”.

O contexto do comportamento deve ser levado em consideração, mas também avaliado eticamente. Para isso, as normas sociais locais, a cultura da organização, as intenções do agente, os resultados de seu comportamento, entre outros elementos, podem ser relevantes para uma avaliação ética a depender da teoria moral utilizada. Muitas vezes, um comportamento em inconformidade pode ser considerado ético sob um determinado ponto de vista.

Imaginem, por exemplo, que a pessoa X desviou recursos da empresa onde trabalha e os entregou integralmente a um ex-trabalhador que desenvolveu uma doença respiratória por negligência desta empresa. A pessoa não tem recursos para tratar-se e a empresa nega ajuda, protelando intencionalmente o processo judicial. Com esses recursos, o ex-trabalhador poderá tratar-se e viver mais anos com sua família. A pessoa X agiu de modo ético ou antiético?

Minha intenção não é responder a essa questão, mas, sim, apelar à intuição da leitora e do leitor sobre a dificuldade e complexidade de avaliar eticamente um comportamento desse tipo. Conseguimos avaliar facilmente sob a perspectiva do compliance, considerando-o um comportamento inconforme, que provavelmente será punido com o despedimento de seu agente e idealmente, mas menos provável, com abertura de um processo interno para investigar a referida negligência. Este é apenas um exemplo simples da imprudência de confundirmos compliance com ética.

Minha intenção é chamar a atenção para a necessidade de mudança de perspectiva sobre o papel das equipes de compliance na avaliação ética. A ética transcende o compliance e o já referido moralismo.

As equipes de compliance são muito importantes para as organizações e precisam ser valorizadas, mas, se quiserem ter um papel efetivo no debate ético, precisarão ser preparadas para realizar avaliações éticas consistentes, sem escolhas à la carte de teorias morais, formando juízos sobre comportamentos com clareza e sem receio de romper convenções, costumes, objetivos e crenças empresariais.

Carlos Mauro é doutor em filosofia e mestre em administração pública e governo. É professor convidado de Ciências Comportamentais Aplicadas no curso de Administração Pública da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas) e na Porto Business School (Portugal). É cofundador da CLOO Behavioral Insights Unit.

Publicada originalmente no Jornal Nexo

Publicado na CompliancePME em 28 de agosto de 2023