Publicado na CompliancePME em 5 de abril de 2024

Há um ano, as três maiores vinícolas do país – Salton, Aurora e Garibaldi – entraram em uma grave crise, quando 207 trabalhadores contratados para transportar uvas foram resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS). O caso chocou o país, mas não o suficiente para fazer recuar esse tipo de crime.

As denúncias de trabalho análogo à escravidão no Brasil aumentaram 61% no ano passado, em relação a 2022 e quase dobraram ante 2021, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. No ano passado, foram protocoladas 3.422 denúncias, o maior número desde que o Disque 100 foi criado, em 2011. O número de trabalhadores resgatados nesta situação é o maior em 14 anos: 3.190.

É no campo onde ocorrem mais casos de trabalho análogo à escravidão. Em 2023, 300 flagrantes foram registrados nas lavouras de café, 258 de cana-de-açúcar e 258 em atividades de apoio à agricultura, segundo o ministério.

Para Roberta de Morais, sócia das áreas de Direito Ambiental e ESG do Cescon Barrieu, o aumento no número de denúncias se deve à maior conscientização coletiva de que não dá para admitir moralmente práticas que afrontam os direitos humanos. O grande problema está em monitorar se a cadeia de fornecedores e prestadores de serviço estão seguindo a lei. “A grande dificuldade das empresas é criar uma governança de levantamento de informações, processamento de dados e correção de rumos, de forma ativa e em toda a sua cadeia produtiva”, diz.

Foi nesse contexto que ocorreu a crise com Salton, Aurora e Garibaldi. A operação conjunta da Polícia Federal, do Ministério do Trabalho e Emprego e Polícia Rodoviária Federal foi deflagrada em 22 de fevereiro de 2023. Os trabalhadores – muitos vindos da Bahia – foram contratados pela Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde, empresa terceirizada das vinícolas para fazer o serviço de carregamento na época da colheita da uva. A Superintendência Regional da Polícia Federal no Rio Grande do Sul informou que o inquérito sobre a Fênix ainda está em andamento. A Fênix, procurada pelo Valor, não se pronunciou.

O jornal “Zero Hora” informou na semana passada que foram coletados dezenas de testemunhos, mas que a Polícia ainda aguarda provas técnicas como mensagens de celulares apreendidos e vídeos de câmeras de monitoramento na região da pensão onde os safristas estavam abrigados. Entre os investigados estão empresários que intermediaram a contratação da mão-de-obra, o dono da pensão e até um policial militar que prestava segurança para os dois e que foi acusado pelos trabalhadores de espancá-los e ameaçá-los de morte.

Há um ano, fotos de alojamentos insalubres, relatos de jornadas exaustivas, atraso no pagamento do salário, violência física, alimentação inadequada e cárcere privado ganharam as manchetes.

Ainda que a investigação não tenha encontrado indícios de participação das vinícolas no episódio, o estrago reputacional já estava feito. As três empresas chegaram a ser suspensas temporariamente de eventos e missões da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).

Quinze dias após o flagrante, as três vinícolas assinaram um Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT), se comprometendo a pagar um total de R$ 7 milhões e seguir 21 compromissos, entre eles, a responsabilidade de fiscalizar as condições de trabalho e estadia de contratados e terceirizados, e reforçar políticas de contratação de serviços, respeitando as leis do trabalho e princípios éticos.

Aproveitando que a lei agora permite trabalhadores temporários na CLT, as empresas optaram por essa modalidade nesta safra de 2024. A Salton chegou a locar um hotel na cidade de Bento Gonçalves para funcionários de seu vinhedo em Sant’Ana do Livramento (RS) se hospedarem, enquanto reforma casas em suas propriedades para se tornarem alojamentos. A Aurora, que no ano passado terceirizou 150 trabalhadores para a safra de uvas, neste ano contratou apenas de forma direta – de dezembro a março, serão cerca de 130 trabalhadores temporários.

Em entrevista ao Valor, representantes das três empresas — Salton, Aurora e Garibaldi – dizem que os meses de março e abril foram os mais difíceis, quando precisaram rapidamente se explicar ao mercado e aos clientes para frear a queda nas vendas. Só a Salton teve 10% de recuo nas vendas em março e outros 15% em abril. Garibaldi e Aurora não citam números, mas admitem o mesmo problema.

Até agora, apenas a Garibaldi divulgou seu balanço do ano. Segundo Alexandre Angonezi, diretor-executivo, a cooperativa teve receita de R$ 280 milhões em 2023, abaixo do planejado (a expectativa era ultrapassar R$ 300 milhões). Mesmo assim, as vendas do ano passado foram acima das de 2022 (R$ 268 milhões).

“Tivemos impacto da receita do ano, provavelmente por causa dessa situação. Não tivemos crescimento de vendas como planejado. Em março e abril houve um hiato de esclarecimentos e fomos em busca de soluções, para ajeitar a casa e evitar que esse problema se repetisse”, comenta Angonezi.

A preocupação principal foi conversar com os 450 associados, explicar o ocorrido e investir em treinamentos e conscientização para evitar qualquer novo problema. “A cooperativa intensificou as atividades com os produtores com seminários de boas práticas trabalhistas. Abordamos desde condições do trabalho, alojamento, EPIs [Equipamento de proteção individual], até contratação formal do trabalhador, prática pouco usual no campo”, diz o executivo. O MPT tem auxiliado em algumas atividades de conscientização.

Tivemos impacto da receita do ano, provavelmente por causa dessa situação”

— Alexandre Angonezi

Os números da Salton serão conhecidos apenas no dia 1º de março, mas Maurício Salton, CEO da Salton, disse ao Valor que não houve perda de contrato, apenas recuo na exposição dos produtos da casa em tabloides e encartes de clientes, o que diminuiu as vendas nesses varejistas.

Para tentar recuperar a confiança dos clientes, a Salton apostou em conversas individuais. Também firmou com as associações Brasileira de Supermercados (Abras) e a Brasileira de Atacadistas e Distribuidores (Abad) um calendário de apresentações, para prestar contas sobre as mudanças feitas para evitar novos casos de trabalho análogo à escravidão.

Ao longo do ano, diz o executivo, houve recuperação, à medida que as manifestações das autoridades – Polícia Federal e MPT – e a aplicação das mudanças propostas pelo TAC e outras ações complementares foram sendo implementadas. “Recuperamos o ‘gap’ e nos aproximamos da expectativa de receita para 2023”, disse Salton. Em 2022, a vinícola registrou uma receita de R$ 500 milhões e a meta é chegar a R$ 1 bilhão até 2030.

Até agora, a Salton desembolsou cerca de R$ 7,5 milhões, além do TAC, com despesas relacionadas ao episódio. “Isso inclui tudo que mobilizamos de recursos decorrentes do episódio, as ações extraordinárias que adotamos, esforços na área comercial e o assessoramento jurídico”, diz Salton.

O esforço principal foi em reanalisar sua matriz de risco e, com a ajuda da consultoria KPMG, fazer um diagnóstico de sua matriz de contratação. A área de compliance, por exemplo, passou a absorver outras iniciativas ESG. As de compras e recursos humanos passaram por treinamentos sobre direitos humanos e trabalhistas.

Na Aurora, Rodrigo Arpini Valerio, diretor de marketing e vendas da cooperativa, explica que o ano fechou “equilibrado” em relação ao anterior, “com leve alta”. Em 2022, a cooperativa faturou R$ 756 milhões e o objetivo é chegar a R$ 1 bilhão em 2025. A cooperativa, que tem 1.100 famílias cooperadas, deve divulgar seu balanço de 2023 no fim de março.

A crise levou a cooperativa a fortalecer sua governança, que é feita por um conselho de 20 cooperados, sendo um eleito presidente com mandato de dois anos. Com auxílio do escritório de advocacia Cabanellos, foi criado um comitê ESG, com o objetivo de monitorar e alertar o conselho para possíveis riscos, e firmada uma parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) para treinar lideranças e cooperados em boas práticas de contratação, direitos humanos e técnicas agrícolas sustentáveis. Um comitê para políticas de diversidade foi instaurado.

Bruno Peixoto, advogado do Cabanellos conta que a empresa já vinha trabalhando em práticas sustentáveis, mas que, depois do episódio, decidiu acelerar o processo.

As três empresas reviram contratos e incluíram novos documentos para contratações de fornecedores. O objetivo é garantir que os fornecedores sigam as regras trabalhistas e tenham condições dignas de trabalho. “Quem não se adaptar, vai deixar de ser parceiro”, diz Valerio, diretor de marketing e vendas da Aurora.

As três disseram que as vendas internacionais não foram afetadas, graças aos esclarecimentos feitos aos clientes. O mercado externo representa 5% das vendas da Salton, 2% da Aurora e 1% da Garibaldi, aproximadamente.

Há duas semanas as empresas passaram por vistorias e auditorias de agentes do MPT e, segundo as companhias, não foram encontradas irregularidades. Procurado, o MPT-RS confirmou as vistorias, mas não deu detalhes.

O prefeito da cidade de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira (PSDB), comenta ao Valor que a prefeitura se envolveu neste último ano com o setor vitivinícola, entidades, prefeitos da região e representantes do Estado em busca de ações conjuntas para evitar situações semelhantes, como, por exemplo, operações de acompanhamento das condições de alojamentos e pensões para verificar a conformidade com exigências técnicas e legais.

“Infelizmente, ainda temos visto movimentos que tentam, de maneira preconceituosa, estigmatizar Bento Gonçalves e a nossa região, criando a falsa narrativa de que aqui apoiamos essas práticas criminosas, quando na verdade elas estão sendo duramente combatidas”, reitera.

Publicada originalmente no site do Valor