Por Pedro Henrique Souza*

Pensou em regra? virou lei!

No compasso de uma Constituição analítica, vivemos desde 1988 uma verdadeira ditadura das leis em detrimento da realidade fática apresentada nas relações cotidianas, muito fruto de um parlamento conectado mais com o mundo das ideias e o modismo legiferante do que com as reais dificuldades e mazelas do povo.

Nosso Congresso Nacional tem desde então e até hoje[1] um perfil constituído majoritariamente por políticos de matiz jurídica, o qual destaco o saudoso advogado Ulysses Guimarães.

Deste modo, muito embora tenhamos uma das Cartas Magnas mais brilhantes e poderosas do mundo, sua toada descritiva e meticulosa acabou impondo um fardo pesado aos que habitam as terras canarinhas, do qual não podemos culpar a aura burocrática da herança portuguesa, explico.

O chamado “custo brasil”[2] é uma denominação de difícil conceituação mas de fácil constatação, o qual resumo de forma simplista porém palpável como o fruto do excesso normativo com a insegurança jurídica.

Nesta esteira emerge desde a constituinte e se avança a passos largos até hoje a ação contundente do parlamento de buscar impor suas visões de um mundo melhor mediante a formatação legal, em um sistema para Kelsen[3] nenhum botar defeito.

Contudo, o que chamo de maneira visceral de ditadura se faz concreto justamente na percepção descrita acima, ao passo que as normas não devem ser o pilar da mudança de comportamento, mas sim o apoio de tal processo. Digamos que a norma apenas determina uma expectativa, uma diretriz, uma estratégia e assim, pelas nas sábias palavras de Peter Drucker, notamos todo dia que “a cultura devora a estratégia no café da manhã[4].

Logo, tanto os Governos quanto as empresas que busquem impor normativos desconexos com a realidade estão fadados a receberem a seguinte resposta: descumprimento e desordem.

Quando o parlamento lança mão de uma norma que não representa os interesses da sociedade certamente colherá a famosa “lei que não pega” e, de mesmo modo, empresas que regularem seus sistemas de Compliance com a criação de políticas e normas que visem tão somente adequá-las à exigências externas, mas sem um olhar atento para a realidade de seus processos e de sua cultura, também sofrerão com a violação contumaz destes mesmos normativos.

Sim, mas esta é a realidade de fácil percepção, e quando chegamos no ponto de que tais normativos sejam usados de modo contrário à própria organização?

Primeiro, no âmbito público, o excesso de leis geradas no seio da assimetria da informação acabam por criar uma inexorável incompatibilidade normativa no sistema jurídico. Isto se apresenta nos mais diversos níveis, desde portarias ministeriais conflitantes até preceitos constitucionais contraditórios, em que nem mesmo a teoria da ponderação de valores é capaz de transpor.

A consequência lógica da incompatibilidade normativa é a insegurança jurídica, uma vez que quando o caso concreto se apresenta para análise de adequação ao direito, seja em âmbito judicial ou extrajudicial, de pronto temos um grande espaço para interpretações e pior, também se molda um caminho tortuoso em que se os fatos se compatibilizam como uma luva em dois ou mais normativos incompatíveis. Temos então um prato cheio para que a insegurança jurídica se torne a regra, onde deveria ser a exceção.

Kelsen não viveu no Brasil moderno, mas caso tivesse vivido talvez teria aderido ao common law ou fugisse para algum país das maravilhas.

Agora voltemos o olhar para a esfera privada, onde a situação se torna mais sutil e muito bem disfarçada. As empresas que hoje em se gabam de robustos sistemas de Governança e Compliance colhem em seus bastidores os pecados da mesma maçã venenosa.

Quando da construção de uma estrutura interna baseada em políticas utópicas, normas operacionais infinitas e códigos de condutas bíblicos, haverá a também derrocada da insegurança jurídica, porém desta vez não são cidadãos descumprindo leis e recorrendo à justiça para observar o mesmo fato serem julgados de maneiras opostas, serão os próprios sócios, acionistas e colaboradores violando todos estes normativos internos e minando uma cultura empresarial que se propôs à impor a ética pelo papel.

Lembremos que o papel aceita tudo e quando as normas internas das empresas são construídas de modo cego e prolixo por juristas, certamente se farão mais danosas ao seu ambiente negocial e à promoção de sua  cultura ética do que aquelas feitas de modo singelo, porém sincero, por profissionais – sejam internos ou externos – que estejam umbilicalmente conectados com a sua forma de gestão e entendam o modelo de seus negócios.

De mais a mais, caso seja tomada a primeira opção acima narrada, não haverá Conselho de Ética com poderes suficientes para conter o pouco caso dos colaboradores e da Alta Administração com as diretrizes normativas, tampouco órgãos de Governança capazes de alinhar os gestores aos protocolos e diretrizes burocráticas e sem sentido.

Em última instância, o cenário chega ao não fantasioso em que as partes relacionadas com o negócio, tais como parceiros de negócios e seus consumidores finais, serão tanto prejudicados por tal descompasso, como também usarão desta incongruência para garantir vantagens e provocar extorsões sem escapatória. Ou seja, formamos então fora formado o Compliance como calcanhar de aquiles de uma empresa, esperando apenas que muitos percam a cabeça pelas ordens da Rainha de Copas.

Para que não fiquemos apenas no mundo das ideias, ou como Aline, perdidos em qualquer outro mundo louco e depravado, vamos buscar dados para concluir esta divagação?

Na 5ª edição do estudo publicado em 2020 pela KPMG, denominado “Gerenciamento de Riscos – Os principais fatores de risco divulgados pelas empresas abertas brasileiras”[5], os riscos regulatórios lideraram um ranking composto por 53 categorias, baseados em 4.586 riscos reportados pelas empresas.

Ao final do documento se apresenta de forma assertiva e pontual um glossário de riscos, que define o risco regulatório nos seguintes termos: 

Riscos associados a leis, normas e regulamentos atuais e futuros que são aplicáveis ao setor, ao mercado de capitais ou às empresas de modo geral. Incluem fatores como: controle de preços; normas ambientais, de saúde e segurança no trabalho e sanitárias; a política de mudanças climáticas e a regulamentação das emissões de carbono; política de gestão de resíduos sólidos; mudanças em leis trabalhistas e/ou previdenciárias; a regulação de setores como o de energia, telecomunicações e do sistema  nanceiro; e regras da CVM ou da bolsa de valores onde a em- presa está listada; entre outros.

Observo que as empresas que alimentaram os dados da pesquisa de forma sincera, porém, se esquecem de olhar no espelho quebrado, assim como fez Alice em seu retorno ao país das maravilhas, e deixaram de enxergar a própria imagem distorcida, eis que é mais fácil culpar o outro do que assumir os próprios erros.

[1] https://www.camara.leg.br/noticias/550900-nova-composicao-da-camara-ainda-tem-descompasso-em-relacao-ao-perfil-da-populacao-brasileira/

[2] http://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/o-que-e-custo-brasil/

[3]  KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito [tradução João Baptista Machado] 6ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[4] DRUCKER, Peter. Leading in a Time of Change: What It Will Take to Lead Tomorrow. [Entrevista concedida a Peter Senge. Título da Revista, local de publicação, volume do exemplar, número do exemplar, p. (página inicial e final do artigo), mês, ano de publicação.

[5] https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2020/08/gerenciamento-riscos-aci.html

*Pedro Henrique Souza, sócio do escritório LCADVS. Especialista em Advocacia Empresarial, Governança Corporativa e Compliance. Ouvidor da Rede Governança Brasil e Diretor no Instituto Brasileiro de Integridade Pública (IBIP)

Esta notícia foi originalmente publicada no Estadão e aqui publicada com autorização do autor. 

Publicado na CompliancePME em 16 de abril de 2021