Os administradores das sociedades são contratados para gerir algo que não lhes pertence (patrimônio dos acionistas) ocupando, portanto, posição baseada em fidúcia e possuindo dever de lealdade (duty of loyaly) perante a companhia.
No caso específico das empresas estatais, em especial as sociedades de economia mista, os deveres fiduciários dos administradores – conselheiros, diretores e membros de órgãos estatutários – são para com a companhia, independentemente do acionista que o indicou para o cargo. Em outras palavras, representantes do Estado e igualmente dos minoritários devem agir sempre no melhor interesse da companhia que, em certos casos, pode conflitar com os de determinado acionista.
Acontece que o ambiente corporativo é caracterizado pelo chamado conflito de agência, em que administradores podem ter incentivos para tomar decisões visando a maximizar seu próprio bem-estar, em detrimento do melhor interesse da sociedade. Note-se que esse cenário também é caracterizado pela existência de assimetria informacional, em que os executivos são insiders e possuem acesso privilegiado às informações, enquanto que os demais stakeholdersPessoas ou grupos de pessoas com algum grau de envolvimento ou interesse em uma organização ou entidade, tais como empregados, clientes, fornecedores ou cidadãos que podem ser afetados por determinada... não.
Nas estatais, as potenciais formas de expropriação são diversas e vão desde a fraudeDesvio de comportamento com a intenção de enganar terceiros e adquirir vantagens ilícitas, seja em relações pessoais ou comerciais. propriamente dita até a realização de investimentos em projetos com baixa rentabilidade realizados com finalidade distinta daquele de maximizar o valor da companhia no longo prazo. Isso implica naturalmente no mau uso do dinheiro público, já que o Estado é o acionista majoritário dessas sociedades. No limite, portanto, são os cidadãos que arcam com esse custo.
Neste contexto, emergem as políticas e práticas relacionadas ao governo das sociedades, conhecidas como governança corporativaÉ o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e... (corporate governance). Elas tratam da estrutura e do processo de tomada de decisões da companhia. Do ponto de vista econômico, a governança lida com as formas pelas quais os provedores de capital de riscoQuantificação e qualificação da incerteza, tanto no que diz respeito a perdas quanto aos ganhos, com relação aos acontecimentos planejados. É um desvio em relação ao esperado. É uma incerteza... – acionistas e credores – se protegem contra a expropriação dos administradores e controladores.
No âmbito das companhias abertas, a “má” governança implica necessariamente desconto de preço, perda de valor econômico em razão da relação clássica entre risco e retorno. Isso porque os agentes econômicos precificam justamente o risco de expropriação em decorrência da utilização dos recursos pelos administradores em atividades que não visam ao melhor interesse da sociedade. Neste contexto, para financiar a companhia eles exigem retornos mais elevados, o que se traduz em um maior custo de capital e acesso mais restrito ao crédito. Diversas pesquisas no âmbito nacional e internacional evidenciam que empresas com práticas inadequadas de governança corporativa negociam com “desconto” perante os seus pares.
Assim, torna-se fundamental a defesa das práticas de governança das estatais brasileiras, até como forma de proteção da res publica. Para isso, faz-se necessário o estabelecimento de princípios, regras e procedimentos – acompanhados da adequada fiscalização e monitoramento pelos órgãos competentes.
Boas práticas de governança nas estatais são necessárias independentemente do partido que se encontra no poder, da ideologia econômica dominante e/ou desse ou daquele indivíduo em específico. De fato, a ideia é justamente essa, qual seja uma “blindagem”: o governo das estatais deve ser protegido das condutas humanas que não tenham por objetivo o melhor interesse dessas sociedades.
Fernando Dal-Ri Murcia é Professor do Departamento de Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo
Publicada originalmente no Terra