Em recente debate, fui indagado sobre diferenças e semelhanças entre a governança de organizações públicas e a de corporações privadas. Alguns CEOs presentes questionavam até que ponto a experiência na gestão pública poderia ser relevante para a gestão privada. A formulação embutia um certo viés preconceituoso contra os gestores públicos, devido, em boa medida, ao desconhecimento dos desafios e limitações que esses sofrem na sua atuação.
Iniciei minha réplica, reconhecendo as múltiplas diferenças nas circunstâncias e pressões enfrentadas por lideranças dos setores público e privado e nos instrumentos à sua disposição para enfrentá-las.
Prossegui comentando os princípios da governança corporativaÉ o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e..., tais como apresentados no Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC. São eles: integridadeConjunto de escolhas que estejam em sintonia com as crenças pessoais e os valores da empresa, prezando pela ética nas tomadas de decisões., transparênciaÉ o que se pode ver através, que é evidente ou que se deixa transparecer. É a virtude que impede a ocultação de alguma vantagem pessoal., equidadeCaracteriza-se pelo tratamento justo e isonômico de todos, levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/conhecimento/governanca-corporativa acesso em:06/04/2021..., responsabilização (accountabilityTermo em inglês que pode ser traduzido como responsabilidade com ética e remete à obrigação, à transparência, de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados....) e sustentabilidade. Ponderei que o executivo de uma organização pública também está submetido a todos esses princípios.
A responsabilização se materializa no dever constitucional de prestação de contas e na fiscalização exercida pelos controles externo, interno e social. A transparência envolve exigências legais, bem mais rigorosas para o setor público. Por exemplo, as empresas privadas não expõem na internet a remuneração de seus dirigentes ou a relação de seus fornecedores.
A integridade dos gestores públicos é permanentemente fiscalizada pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade. Observar a equidade na administração pública é consequência dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição. E a sustentabilidade, como pilar da gerência dos negócios públicos, deriva dos objetivos fundamentais da República.
Na sequência, respondi a outra objeção muito comum: o executivo público não é cobrado pelos resultados que entrega. É um equívoco. A avaliação dos resultados de políticas públicas é uma exigência constitucional. Se na empresa privada o dirigente deve garantir valor para os acionistas e demais stakeholdersPessoas ou grupos de pessoas com algum grau de envolvimento ou interesse em uma organização ou entidade, tais como empregados, clientes, fornecedores ou cidadãos que podem ser afetados por determinada..., na área pública as cobranças também são intensas, pois, a rigor, toda a sociedade tem o direito de exigir que a aplicação de recursos públicos assegure o bem comum.
Outra analogia interessante diz respeito ao ambiente concorrencial. Na área privada, os dirigentes se preocupam com a concorrência tradicional no seu nicho de mercado e com a inovação disruptiva que pode tornar obsoletos produtos e marcas até então dominantes e consagrados. No setor público, a concorrência se dá no campo da competição política. No ambiente democrático, líderes e blocos políticos que não atendem às expectativas de seus eleitores são derrotados e substituídos por outros, que, por sua vez, precisarão apresentar realizações no curso de suas gestões.
Como nas corporações privadas, os melhores gestores públicos são testados a tomar decisões difíceis em crises políticas, institucionais e financeiras. De igual modo, enfrentam conflitos trabalhistas e duras negociações judiciais e extrajudiciais e necessitam liderar e motivar equipes heterogêneas em tempos de incerteza.
Dito isso, repito que é evidente que são muitas as especificidades que distinguem a gestão das organizações públicas e privadas. Aliás, mesmo no interior do setor público, há distinções muito significativas entre o exercício da liderança numa organização militar e numa universidade, ou entre a direção de uma fábrica de vacinas e a de uma agência regulatória e assim por diante. Da mesma forma, no setor privado, conduzir uma rede varejista exige habilidades diferentes das requeridas para uma startup em inovação tecnológica.
Porém, o ponto que propus enfatizar é: existem competências (resultantes de conhecimento, habilidade e atitude) que podem ser adquiridas na gestão pública e ser de grande utilidade para o exercício de funções relevantes na governança corporativa privada, como em conselhos de administração e consultivos: negociação, comunicação, visão sistêmica, planejamento estratégico, escuta ativa, comunicação e liderança.
Superar visões enviesadas pode abrir a oportunidade para grupos privados, tanto empresas de capital aberto como negócios familiares, contarem com a experiência de líderes forjados na gestão pública.
Por Luiz Henrique Lima, conselheiro certificado e professor
Originalmente publicada no Estadão