Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas (PPED/UFRJ) e autor do Livro “Vale quanto pesa” – Ed. Fórum
Walter Luis Araújo da Cunha, Mestrando em Administração Pública pela FGV – EBAPE
Bezerra da Silva (1927-2005), artista carioca que melhor representou o cotidiano da periferia do Rio de janeiro na década de 1970/1980, trazia em suas engraçadas obras um personagem recorrente: o chamado X-9, dedo de seta, alcaguete, coruja. Enfim, segundo o próprio autor em suas obras, a turma da “entregação”. Esse personagem da cultura popular é derivado de um país de raízes escravocratas, de lutas entre grupos de opressores e oprimidos, o que faz da indicação da não aderência algo proscrito por prejudicar os companheiros. Uma visão que também tem seus reflexos na cultura administrativa.
Não por outra razão, existe muita dificuldade em implementar no país iniciativas de whistleblowing, denunciantes do bem, sistemas de recompensas e outros mecanismos similares, pois existe um certo ethos de que pertencer a esse time da “entregação” é vergonhoso. Isso tudo sem contextualizar essa análise com os prejuízos sociais advindos da não aderência a determinadas práticas e, ainda, sem considerar como a circulação de informações poderia ser um remédio valoroso para o aprimoramento da gestão das políticas públicas, que garantem a escola, o hospital e a bolsa.
Existem países nos quais o departamento de trânsito compra dos cidadãos fotos de automóveis cometendo infrações, para com essas fotografias aplicar multas. Imagine como isso seria encarado em nosso país? As teorias de redução sociológica de Guerreiro Ramos (1915-1982) nos alertam para essa importação de modelos estrangeiros de forma acrítica e que se chocam com o contexto cultural dos países receptadores.
Mas, o que isso tudo tem a ver com a gestão de riscos no âmbito das políticas públicas? Bem, não é só o processamento de denúncias que padece dos problemas advindos da atribuição do papel de “dedo de seta” para os que apontam oportunidades de melhoria. O processo de comunicação dos riscos, componente previsto no framework do COSO (Committee of Sponsoring OrganizationsCommittee of Sponsoring Organizations (COSO): é uma organização privada criada nos EUA em 1985 para prevenir e evitar fraudes nos procedimentos e processos internos das empresas. of the Treadway Commission) e nas normas ABNTAssociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): órgão responsável pela elaboração das normas técnicas brasileiras e suas conformidades, além de emitir certificações técnicas e garantir credibilidade nos serviços prestados por empresas.... NBR ISOA Organização Internacional de Normalização ou Organização Internacional para Padronização, popularmente conhecida como ISO é uma entidade que congrega os grémios de padronização/normalização de 162 países.... 31000, na qual os riscos que foram tratados são amplamente disseminados, também sofre de problemas nesse sentido.
O processo de gestão de riscos nasce de um inventário de fatores que podem afetar os nossos objetivos, e, após todo um processo de análise e avaliação desses fatores, é proposto um tratamento, e inaugura-se um ciclo virtuoso de aprimoramento da governança e de ajuste dos controles criados. Mas, se o gestor, que conhece bem o seu negócio, não abrir as suas caixas nesse processo, todo ele será deficitário.
O fato é que as organizações públicas precisam gerir seus riscos. Isso é premente. Mas, não é muito recomendado que o setor responsável pelo suporte à gestão de riscos seja visto como um “X-9”, uma vez que isso prejudicará todo o desenrolar desse processo, afastando-o do gestor e das informações necessárias. É preciso conciliar essa matriz cultural com a necessidade da organização melhor se conhecer, e consequentemente, de conhecer seus riscos, ou seja, os fatores que são prováveis e que podem afetar os seus objetivos.
Na estrutura adotada modernamente para gerir riscos nas organizações públicas, o responsável pela Gestão de Riscos é o próprio gestor daquela seara (processo, setor, ativos, objetivo, política pública etc.), apoiado por um setor especializado no suporte ao processo de gestão de riscos, nominado aqui como “Setor de Riscos”, um facilitador e orientador. Nesse papel de estímulo e apoio, faz-se necessário evitar a todo custo cair na tentação de tentar “ganhar pontos” com a Alta Administração, ao custo de trair a confiança das outras áreas.
Note, estimado leitor, que trair a confiança pode ser traduzido como a exposição precipitada de fragilidades informadas em boa-fé pelos gestores ao “Setor de Riscos, durante o processo de mapeamento. “Precipitada” no sentido de que não foi dada a devida oportunidade de um esclarecimento mais aprofundado, ou mesmo de o próprio gestor relatar a situação, com todos os atenuantes e agravantes que a cercam. Afinal, em um ambiente profissional e de confiança, ninguém melhor do que o gestor para fazer isso.
Cabe ao “Setor de Riscos, como facilitador, ter o tato necessário para que essa pecha de “turma da entregação” não contamine o processo. O riscoQuantificação e qualificação da incerteza, tanto no que diz respeito a perdas quanto aos ganhos, com relação aos acontecimentos planejados. É um desvio em relação ao esperado. É uma incerteza... informado de boa-fé, na confiança, assim deve ser tratado, pois o processo de gestão de riscos exige um certo desnudar voluntário da área, que expõe as suas limitações e fraquezas, na busca pelo aprimoramento.
Se essa cadeia de confiança se romper, o processo será permeado das verdades burocráticas, formais, o que impedirá a chegada ao âmago dos riscos com a profundidade necessária, prejudicando o processo e tornando ele pouco protetivo. A confiança é uma construção pautada em um jogo de ganha-ganha, enxergando a gestão de riscos como algo benéfico para todos, e não como uma caça aos erros, reproduzindo modelos policiais, que atraem a ideia de “X-9”.
É preciso considerar que, diante de uma embaraço injustificado do gestor em contribuir com o processo, omitindo dados, será demandado do “Setor de Riscos” mais habilidade na condução desse processo, mostrando aos resistentes que a evasão pode expor esse gestor a dissabores maiores no futuro, quando esses problemas se materializarem. Ignorar os avaliadores, nesse caso, os gestores de riscos, não faz o problema sumir… Pelo contrário, só o agrava!
Uma boa prática nesse sentido, na busca de minimizar o atrito inerente ao processo de comunicação de riscos, é estabelecer ritos periódicos e formais de reporte por parte dos gestores aos seu superiores, culminando no reporte final ao ComitêGrupo de pessoas escolhido para análisar assuntos específicos, podendo ser composto por membros externos da empresa; de Governança. Estabelecida a periodicidade, não é preciso existir necessariamente um problema para a comunicação do risco acontecer, o que, por sua vez, minimizará sensação de negatividade que sempre paira sobre a gestão de riscos.
A periodicidade afasta também a ideia de que o “Setor de Riscos está perseguindo determinada área, pois uma vez que o reporte é periódico, e por definição isonômico, ele dará ao gestor o espaço adequado de apontar essas situações, bem como as medidas já adotadas. Por fim, o reporte periódico, se bem conduzido, favorece a detecção tendências em relação aos riscos centrais, o que permite ao órgão a chance de empregar alguma capacidade de reação.
Diferentemente da visão inquisitória, nessa abordagem o Setor de Riscos atuaria como um facilitador, orientando o gestor sobre as melhores práticas de reporte. Passa o setor de riscos a ser uma espécie de “scrum master” do processo de comunicação de riscos, ou seja, passar a ser visto com alguém com quem se possa contar para obter ajuda nesta seara, diminuindo os entraves de uma visão “X-9” desse processo, mantendo o clima de confiança, aliado a uma ideia de aprimoramento da governança.
O processo de gestão de riscos, em alta na gestão pública e privada, pode ter aspectos áridos, por envolver fragilidades que, com o tempo, podem resultar em grandes problemas, com prejuízos materiais e à vida humana. A tendência é “varrer para baixo do tapete”, e o comunicar essas fragilidades pode gerar tensões culturais, na linha do “dedo de seta” do saudoso Bezerra da Silva.
É preciso ampliar a ótica dessa questão, enxergado a organização como um todo e, o futuro, com suas ameaças e oportunidades, características do processo de gestão de riscos, de modo que as fragilidades venham a tona e sejam objeto de discussão e tratamento. Melhor ficar “vermelho” de vergonha para expor seus problemas, do que ficar oculto, “verdinho”, escondendo um problema que vai amadurecer e que pode se tornar incontrolável.
Originalmente publicada no Estadão e com reprodução autorizada pelo autor