O combate à lavagem de dinheiro é uma estratégia importante para enfraquecer organizações criminosas. Mais do que prisões, a identificação e o confisco de seus recursos parece ser um instrumento relevante para impedir que tais grupos sustentem seus militantes e garantam a cooperação de aliados.

Nesse contexto, a partir dos anos 1980, diversos países passaram a tratar como crime autônomo o ato de ocultar bens de origem ilícita e exigiram que empresas e profissionais que atuam em setores mais sensíveis à lavagem de dinheiro (bancos, corretores de imóveis, leiloeiros de arte, comerciantes de bens de luxo, como joias) passassem a comunicar às autoridades públicas atos suspeitos praticados por seus clientes.

A correção da ideia, no entanto, não foi acompanhada pela moderação em sua execução. Regras pouco claras sobre os atos suspeitos que devem ser comunicados e sobre as precauções que profissionais que atuam nesses setores devem tomar criaram uma espécie de paranoia com efeitos nocivos em diversas direções.

O primeiro deles: o engessamento. O medo de ser relacionado a práticas de lavagem de dinheiro tem levado inúmeras empresas a suspender atividades em determinados setores, a evitar a abertura de novos negócios. Por óbvio que se tais atividades facilitarem a prática do crime, é melhor que sejam evitadas, mas nem sempre se trata disso. Às vezes, a falta de regras claras leva à paralização de operações sem relação com o crime em questão, por puro e simples receio que uma interpretação extensiva de uma resolução mal redigida caracterize como auxílio à lavagem de dinheiro uma transação normal e corriqueira naquele setor.

O segundo: o afastamento de parte da população de serviços básicos, como o bancário ou o securitário. As regras de compliance e de integridade às vezes são aplicadas de forma tão ortodoxa, que empresas — como bancos ou seguradoras — deixam de se relacionar com inúmeras categorias de pessoas por medo de eventuais acusações de colaboração com a lavagem de dinheiro. Isso ocorre com pessoas politicamente expostas e seus familiares, bem como com aqueles que já foram mencionados ou citados em processos judiciais ou notícias de jornal como suspeitos, mesmo que inexistam investigações contra eles, ou mesmo que já tenham sido absolvidos.

O terceiro: o excesso de notificações de atos suspeitos. A já mencionada falta de clareza das normas de prevenção à lavagem de dinheiro faz com que profissionais obrigados a comunicar atos suspeitos exagerem no número de informações que levam às autoridades. Como não se sabe bem o que é uma conduta atípica, que mereça ser apontada ao poder público, opta-se por notificar tudo, qualquer transação, mesmo que usual. A quantidade afeta a qualidade da informação, e a política de acompanhamento de condutas realmente suspeitas perece diante de um mar de dados remetidos ao poder público, que não conta com estrutura ou capacidade de gerenciá-los ou digeri-los.

O resultado: um sistema pouco funcional, que engessa a atividade empresarial, afasta pessoas de serviços essenciais, e afeta a eficiência do próprio combate à lavagem de dinheiro. É passada a hora de repensar o arcabouço de prevenção à lavagem de dinheiro, com a definição mais clara das condutas esperadas dos profissionais obrigados e com a descrição mais precisa dos atos que merecem ser comunicados. Só assim será possível criar uma política criminal eficiente, que possa enfrentar uma criminalidade sofisticada com instrumentos mais efetivos.

*Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal da USP e presidente da Comissão de Liberdade de Expressão da OAB

 

Publicada originalmente no site  O Globo

Publicado na CompliancePME em 12 de julho de 2023