O advogado e especialista em governança corporativa Robert Juenemann fala sobre o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ e a importância da pauta da diversidade nas empresas e conselhos

Por KARINA PASTORE

No ano passado, o advogado gaúcho Robert Juenemann, teve covid. No mesmo período, seu marido também foi contaminado pelo novo coronavírus – com uma evolução bem mais grave da doença, porém. “Vi que, de uma hora para a outra, poderia perder o meu companheiro”, lembra. “Simples (e duro) assim.” Em outubro, os dois completam 32 anos de relacionamento. Bateu a consciência da brevidade da vida e Robert decidiu construir um legado. Especialista em governança corporativa, escolheu levar a causa LGBTQIA+ para os conselhos de administração e consultivos. Sua primeira medida foi divulgar um texto sobre o assunto nas redes sociais. “Para que a comunidade LGBTQIA+ prepare-se para ocupar postos de liderança nas empresas sendo quem são e sem vergonha de levar o companheiro, companheira, marido, mulher ou quem quer que desejem nas festas da companhia”, diz ele.

Aos 55 anos, Robert é conselheiro fiscal suplente da Petrobrás e da Eletrobrás e de administração titular da Cortel Holding S.A, empresa de capital fechado (a caminho da abertura), do ramo de cemitérios, crematórios e funerárias. Já passou pelo Banco do Brasil, Vale, JBS, AES Tietê Energia, Raia Drogasil e CELESC. Além disso, se formou em mediador de conflitos pelo Center for Effective Dispute Resolution (CEDR), de Londres.

Robert tem uma longa e árdua luta pela frente. E ele sabe. Se a pauta da diversidade ainda tem de ser muito bem trabalhada no dia a dia das empresas, nos conselhos, estruturas tradicionalmente mais conservadoras, ela praticamente inexiste. “É comum, no meio corporativo, a brincadeira de que em reuniões de diretoria sejam mostradas fotos dos filhos”, conta ele. “E, nas de conselhos, as de netos.” De fato. Um estudo recém-concluído pelo Instituto Brasileiro de Direito e Ética (Ibdee), com o apoio do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e patrocínio do escritório Blanchet Advogados, revela o perfil do conselheiro no país – homem, branco, heterossexual, com mais de 50 anos.

Das 61 companhias analisadas, 98,4% não têm ninguém da comunidade LBGTQIA+ em seus conselhos. Noventa por cento não contam com nenhuma pessoa negra; 95,1%, com nenhuma pessoa portadora de deficiência 31% com nenhuma mulher e 26%, com ninguém de menos de 50 anos. A análise do número de cadeiras nos conselhos por representantes de cada um desses pilares de diversidade confirma o abismo. Dos 408 conselheiros, apenas 22,5% não chegaram aos 50, 17,9% são mulheres; 2,2% são pessoas negras; 0,7% tem alguma deficiência e 0,2% é LGBTQIA+. Pelo menos 10% da população brasileira é LGBT.

A busca pela diversidade exige uma mudança profunda de mentalidade, de cultura corporativa. Dê uma olhada nesse outro dado da pesquisa do Ibdee: das cinco organizações sem jovens, mulheres, negros, pessoas com deficiência ou LGBTQIA+ em seus conselhos, três são tidas como inclusivas por seus conselheiros. Como achar que é não significa necessariamente ser, tem-se um grande problema aí. “O conselho de administração é responsável por fixar a orientação geral dos negócios, dentre uma série de outras atribuições”, diz Robert, em conversa com Época NEGÓCIOS. “É fundamental que o conselho defina a política de recursos humanos, onde encontra-se inserida a pauta da diversidade. Só que, na prática, não é simples. Muitos, mas muitos conselhos, preocupam-se apenas com as vendas e com o faturamento, com o orçamento, como estão os números do trimestre, qual a cotação em bolsa da ação e como tratarão dos dividendos, especialmente agora, que há uma crescente participação da pessoa física na bolsa de valores.” Veja a seguir, os principais trechos da entrevista.

Você já foi vítima de preconceito no trabalho por causa de sua orientação sexual?
Sou um privilegiado e tenho noção disso. Sou branco, loiro, tenho boa escolaridade. Meu pai me deu oportunidade de estudar nos Estados Unidos e na Alemanha. Assim, as situações de discriminação que sofri profissionalmente são ínfimas se comparadas às que a comunidade LGBTQIA+ sofre todos os dias – e isso precisa mudar.

Dito isso, lembro da primeira reunião de um conselho para o qual fui indicado. Como eu era novo nesse conselho, quiseram saber sobre minha mulher e filhos. Respondi que tenho um marido, mas decidimos não ter filhos. O clima na sala foi de constrangimento. Quem me fez a pergunta, claramente, não estava preparado para receber essa resposta. Coube ao conselheiro homossexual trazer outro tema para a roda que se formara, para quebrar o gelo. Pois o silêncio dos demais foi imediato.

Embora não seja casado formalmente, agi assim para que os presentes se dessem conta de que há diversidade mesmo sob um terno e gravata e sem gestos que geralmente são atribuídos ao estereótipo LGBTQIA+, percebido ou reconhecido pela sociedade – o que, por si só, já demonstra preconceito. Não sou menos LGBTQIA+ por não ter gestos femininos.

Importante foi demonstrar o despreparo de quem fez a pergunta para ouvir a resposta que recebeu – que é o mais preocupante. Conselheiros têm de estar preparados para lidar com situações adversas, como foi o caso, sem deixar que um clima de desconforto aconteça.

Em geral, o ambiente corporativo também não está preparado para receber profissionais LGBTQIA+?
A discriminação assume várias formas e matizes. Não pertencer a determinado “grupo social” pode representar tua exclusão. Te excluem de determinado círculo empresarial por não fumares charuto, por não fazeres putaria e sair contando por aí… Enfim, por seres “veado”. Imagine o que é ser identificado como gay. Sim, não nos enganemos, o preconceito e a tendência de excluir o diferente seguem. Quando não estamos presentes, somos “as bichas”, desconsideradas e amaldiçoadas no mundo corporativo. Sentem-se constrangidos e desconfortáveis em nossa presença e, assim, sentem-se mais à vontade e preferem lidar com advogados heteros e com o mesmo padrão de pensar para atender seus negócios. Procuram mais do mesmo.

A discriminação barra candidatos muito qualificados e os exclui. Há especial ojeriza se o profissional em questão, por exemplo, é afeminado e/ou usa roupas exuberantes. Ainda que veladamente, boa parte das empresas acha formas de tais candidatos não chegarem às finais. E isso é vergonhoso.

Ora, cada um é como é. Veja o horror: posso ser um profissional altamente qualificado, com todas as condições exigidas para o exercício de uma função na empresa, mas sou excluído, sem qualquer chance de esclarecimento de motivo, de um processo seletivo apenas por ser “diferente”. O “diferente” ainda afeta a comunidade empresarial muito mais do que imaginamos. E isso é prejudicial ao crescimento das empresas.

Este é o ponto: a diversidade contribui para ampliar os horizontes de uma empresa, melhorar sua visão da comunidade onde está inserida, sua sensibilidade para temas tidos como delicados, e possibilitar diferentes visões e posturas sobre determinados temas, o que em última análise enriquece a empresa, a conecta com a realidade social, amplia sua possibilidade de negócios e de lucratividade. Pelo menos 10 por cento da população brasileira é LGBT.

Por que os conselhos devem ser diversos e inclusivos?
O conselho é responsável por fixar a orientação geral dos negócios, dentre uma série de outras atribuições. Assim, é fundamental que haja a percepção de agregação de valor no processo de tomadas de decisões estratégicas. Com mais diversidade, os conselhos conseguem melhor cobrir mais recortes da sociedade, assim, tomar decisões mais assertivas. Só que, na prática, não é simples. Muitos, mas muitos conselhos se preocupam apenas com as vendas, com o orçamento, como estão os números do trimestre, qual a cotação em bolsa da ação e como tratarão dos dividendos, especialmente agora, que há uma crescente participação da pessoa física na bolsa de valores.

Quem não decide sobre o que lhe compete, deixando a terceiro que assim o faça, sem tomar conhecimento, não cumpre com os seus deveres como conselheiro. Pior. Havendo consequências negativas para a empresa em função de algum evento que arranhe a reputação da companhia, onde estavam os conselheiros? Parem para pensar. Quantas vezes nos últimos escândalos que vieram a público essa pergunta foi feita? Onde estavam os conselheiros?

As empresas dependem de pessoas. Se as empresas não se preocupam em oferecer um ambiente de trabalho afável e inclusivo, no qual os funcionários se sintam bem, como querem que os colaboradores reajam? Sem uma política definida, cada um age como quer e de acordo com o seu julgamento. O que nem sempre está alinhado com os valores da empresa. Portanto, cuidar de gente é cuidar de toda a gente. Inclusive da gente que pertence a grupos de diversidade. Sim, elas são pessoas e, no caso da diversidade étnica, é maioria no país, mas ainda tratada com preconceito e violência.

Inúmeros estudos já demonstraram que a diversidade faz bem aos negócios, diminui as taxas de turnover, atrai talentos e promove a inovação, entre outros benefícios.
Sim. O tratamento adequado da diversidade demonstra que a estrutura de governança está mais amadurecida e que empresas nesse estágio são mais resilientes às crises, geralmente também carregando maior valorização de suas ações e do retorno aos acionistas em dividendos. É sabido que um conselho precisa de conselheiros com perfis diferentes e com competências diferentes. Assim, um conselheiro advindo de grupo de diversidade provavelmente oferecerá ao conselho uma gama bastante variada e diferente de opiniões, justamente por ter uma perspectiva diferente. E é isso que se busca com conselho –profissionais que, em função de suas diferentes formações e experiências, consigam fazer um processo de estruturado de tomada de decisões levando em consideração as várias facetas de uma determinada situação.

Há estudos que demonstram a assertividade que a mescla de pessoas diferentes leva as companhias a decisões mais acertadas, com menos margem de erro. E, ainda, de quebra, o conselho ganha alguém que conhece a diversidade por vivê-la diariamente, podendo contribuir em muito para que haja avanços nas políticas internas e externas da companhia. Outro ganho que a diversidade traz ao conselho: como se comunicar com os nichos de mercado da diversidade, além de assegurar que as campanhas que buscam o pink money estejam baseadas em políticas que verdadeiramente guiem os negócios da companhia. Sabem por quê? Porque conhecemos os códigos da comunidade LGBTQIA+.

Temos de considerar ainda os fatores externos de pressão, tais como consumidores, acionistas e fornecedores, que exigem das empresas condutas cidadãs. Há também a crescente imposição de investidores que exigem requisitos mínimos em determinados áreas, inclusive na inclusão LGBTQIA+.

Como garantir na prática um conselho e, consequentemente, uma empresa diversa e inclusiva?
O primeiro ponto é reconhecer o valor que a diversidade traz ao conselho e à empresa. Se não houver esse reconhecimento, o conselho e a empresa devem ser humildes o suficiente para reconhecer que não entendem do assunto e que, portanto, precisam de ajuda externa. Havendo o reconhecimento, é muito importante que os valores da companhia sigam o caminho de cima para baixo. Ou seja, o exemplo vem de cima. O tão conhecido “tone at the top”. Para assegurar que esses valores sejam reconhecidos e exercitados por todos, é importante que haja a formulação de políticas acerca do tema pelo conselho de administração, e que elas reflitam integralmente os seus valores. Também é preciso que o conselho transmita esses valores e políticas para a gestão, responsável por sua implementação, cabendo ao conselho de administração a fiscalização da gestão para que o que foi decidido aconteça na prática, sem desvios. E sem exceções.

Só assim, com muita determinação e trabalho, é que se constrói uma cultura forte e que se perpetua pela observância dos valores e das suas consequentes políticas. Não nos esqueçamos: em ambientes acolhedores e seguros, a produtividade aumenta. E muito. O que estamos esperando?

Como fica o Brasil em relação ao mundo?
Ao participar de rodadas de entrevistas com representantes de investidores em março e abril deste ano, foi notável o desinteresse demonstrado pelos representantes de investidores nacional em relação ao tema LGBTQIA+. Os representantes de investidores estrangeiros tiveram postura radicalmente oposta. Aos nacionais interessava mais visões de curto prazo e de que forma seus clientes poderiam obter o máximo de dividendo – mesmo que isso representasse a venda aos pedaços de uma companhia, por exemplo. Fiquei realmente desapontado e envergonhado ao ver que a minha sintonia estava no exterior, e não aqui, junto aos brasileiros. Assim, fica a pergunta: o que os investidores internacionais enxergam que os nacionais não? As empresas desejam o capital estrangeiro, mas falham ao cumprir espontaneamente com os seus requisitos de diversidade para que sejam elegíveis. O que está faltando, além do preconceito e da dificuldade em tratar de tema delicado?

Mas os conselhos aqui no país estão preparados para abordar a questão LGBTQIA+?
Logo após a publicação do artigo que escrevi, fui convidado para participar de um painel sobre diversidade em um curso privado de formação de conselheiros. Expus a questão da diversidade no âmbito LGBTQIA+ e houve uma sessão com perguntas e relatos.  Muito embora a maioria dos presentes tenha gostado do meu ponto de vista, alguns disseram que não veem a orientação sexual como um problema. Eles afirmam que lidam bem com o profissional que foi contratado, não importando o que ele faça da sua vida pessoal, sem interessar ser hetero ou gay. Disse que entendia o que estavam querendo dizer: que não eram pessoalmente preconceituosas. Mas eles seguiram dizendo não ver essa questão como um problema a ser superado. Ao que respondi: “Da forma como vocês se manifestaram parece que tudo está bem, que não há problema com a comunidade LBGTQIA+”. Parecia que estávamos na Disney, onde tudo é lindo, maravilhoso e sem conflitos.

Acho que confundiram sua posição pessoal não preconceituosa com a cultura da empresa onde trabalham. E são coisas diferentes. Nem sequer chegaram a refletir quão inclusivas ou excludentes são as empresas onde trabalham em relação a esse ponto.

Não se manifestaram, no entanto, acerca da agregação de valor que alguém pertencente a um grupo de diversidade pode trazer a um conselho, dentro de um processo de construção de decisões. Penso haver pelo menos dois grupos. O primeiro é composto por pessoas que concordam com a importância da temática, mas que ainda não sabem bem como lidar com o tema. O outro, por quem acha que não é problema e que está tudo bem, em função de ter uma postura pessoal não preconceituosa.

O que me parece importante é que deixe de haver a negação no segundo grupo. A aceitação de que há um problema, ou de que há uma situação na qual podemos aperfeiçoar uma política que já adotamos é o primeiro passo para avançar. É nesse grupo que mais esforço precisa ser dedicado, pois sua visão desfocada muito provavelmente levará a seus membros a tomar decisões erradas, quer na gestão ou no conselho. É importante que haja uma conexão com o chamado “espírito de época”, zeltgeister, em alemão, para que possam se comunicar com outros valores e outros pontos de vista, conceitos mais atuais. Não dá mais para viver em uma bolha de vidro, negando o que não conhecem.

O primeiro passo para resolver um problema é reconhecer a sua existência.
Um dos motivos pelos quais a discussão não avança sobre a importância da diversidade LGBTQIA+ nas empresas e nos conselhos decorre da dificuldade que estes têm em ter de lidar com algo que não conhecem, e que acham não ter valor agregado. Para a maioria, é menos difícil tratar da questão da diversidade de gênero e de etnia, pois o tema já está mais sedimentado na sociedade e não assumir posições de acolhimento seria desastroso. Entretanto, quando a diversidade não é claramente visível, e aí entra a comunidade LGBTQIA+, mexemos com os valores das pessoas.

Basta perguntar a um pai e um mãe se gostaria de ter um filho homossexual. A esmagadora maioria das respostas seria “não”. Alguns, mais ilustrados, diriam talvez que tudo bem, mas que temeriam pelo futuro dos seus filhos, em função dos desafios e sofrimentos pelos quais teriam de passar durante a vida. Na verdade, não querem saber, quanto mais longe estiver esse assunto, melhor. Lamento dizer, mas esse é o pensamento da esmagadora maioria.

Por ser difícil, a discussão no conselho cai no limbo, vai para último lugar na pauta de assuntos a serem tratados. Isso quando o assunto chega ao conselho… A chamada que faço é para que os conselhos passem a reconhecer que é difícil tratar de um assunto sobre o qual os próprios conselheiros têm praticamente a mesma opinião e vários vieses. Não desejam um filho gay. E transferem essa confusão mental para os conselhos.

É por essa razão que os conselhos precisam reconhecer que cada um é preconceituoso à sua maneira. Mas que tal preconceito não pode impedir uma discussão que é necessária. Por bem do negócio, da empresa e da sociedade. Portanto, que se reconheça que existe a dificuldade, para que possamos avançar. E que não haja vergonha de buscar ajuda externa. Se um conselheiro não conhece contabilidade, ele deve buscar ajuda para estudar e entender a matéria. O mesmo deveria acontecer com diversidade no âmbito da orientação sexual. Muitos já começam com erro de chamar orientação com “opção”. Opção é algo que se escolhe, orientação a gente tem, independente da vontade. É preciso reconhecer que somos preconceituosos para reconhecer a existência do problema. É o primeiro passo para buscar o avanço. Sem isso, continuaremos patinando nessa pauta.

Ainda há um longo caminho a percorrer até que a diversidade seja de fato incorporada aos conselhos. Mas devem ter ocorrido avanços, sobretudo, nos últimos anos. Ou não?
Já testemunhei inúmeros reposicionamentos, mas lamentavelmente também testemunhei um número maior de profissionais que preferiram o seu desligamento a mudar. Pela dificuldade em tratar do assunto e/ou pela percepção da aparente falta de relevância do tema. Focando na parte positiva, há pelo menos duas formas de alguém se encontrar com o tema. Na impessoal, a pessoa age de maneira errada sem se dar conta ou, mesmo agindo conscientemente, se dispõe a refletir sobre o assunto. E decide mudar.

E há a forma pessoal, que é aquela que deriva, por exemplo, de uma relação pessoal desenvolvida com um colega de trabalho. Os dois amigos se dão bem no trabalho, e começam a conviver socialmente. Primeiro, um happy hour com os colegas de trabalho. Depois, vem a fase de um ir à casa do outro. E, surpresa: o colega de trabalho, com quem o outro se dá tão bem, é gay. Constrangido, o hetero vai na casa do colega gay com sua mulher. Conhecem o seu companheiro. Para sua surpresa, não há cama redonda no quarto, espelhos no teto e nem cortinas rendadas. É uma casa comum, como a que o próprio casal hetero vive. A partir daí, na melhor das hipóteses, os seus valores e posturas homofóbicas passam a ser questionadas. O que se ouve muito, do amigo hetero, nesse caso, é que “ele é um cara muito legal, apesar de ser gay”. E assim, aos poucos, o preconceito começa a deixar que o afeto de uma amizade natural entre duas pessoas seja mais importante do que com quem o colega divide a sua vida.

Vivi uma situação interessante em uma concessionária de automóveis em Porto Alegre, há vinte anos.  Enquanto esperava que meu automóvel ficasse pronto da revisão, decidi descer um andar abaixo para ver os modelos usados à venda. Para minha surpresa, reconheci, pela placa, o automóvel de um amigo (falecido há um ano, de covid). O carro estava à venda, pois ele acabara de comprar um novo, na mesma revenda. Em seguida, vejo o vendedor com um cliente e fazendo o seguinte comentário: “Este carro é espetacular, super bem mantido, baixa quilometragem. O problema é que (ele riu) o dono é veado. Se tu te garantes que não vais pegar a “bichice” dele ao sentar no banco, é uma boa opção”. Assisti a isso quieto.

Ao chegar em casa, relatei o ocorrido ao meu amigo, que muito se entristeceu, pois sempre que podia, promovia a concessionária. E pedi autorização a ele para levar o tema à diretoria da empresa. E assim o fiz. Escrevi um “fax”, que era moda na época, relatando o ocorrido e dizendo que a conduta adotada pelo vendedor prejudicava a marca e o nome da concessionária. Não levou meia hora para eu receber um “fax” de volta da concessionária agradecendo pelo relato, e informando que o colaborador não trabalhava mais para a empresa. A partir daí, a concessionária passou a ter conduta exemplar com a comunidade LGBTQIA+.

Em sua opinião, quais são as empresas que levam a questão LGBTQIA+ verdadeiramente a sério?
Acho importante fazermos uma distinção. Deveriam existir empresas nacionais que valorizassem e buscassem a diversidade LGBTQIA+ em seus conselhos. E há as empresas que adotam políticas em relação à diversidade em geral. As empresas do primeiro grupo, confesso que não conheço nenhuma que adote uma política específica acerca do assunto. Falando com headhunters experientes, lamentavelmente também não vejo procura no mercado brasileiro para conselheiros que sejam oriundos da comunidade LGBTQIA+. Em relação às empresas do segundo grupo, há nomes relevantes fazendo trabalhos consistentes, como Itaú, Ford, Salesforce, Skol, Avon, Coca Cola, Magazine Luiz, Gerdau, Natura, Tenda Atacado e Centauro, entre outras.

O interesse nos grupos de diversidade está diretamente ligado à evolução das práticas de governança das empresas. Como as empresas têm diferentes velocidades e profundidades em cada tópico de governança, o tempo que cada um a leva para chegar ao tema diversidade é variado. E, claro, há aquelas que não se preocupam com o tema, o que certamente fará com que, ao longo do tempo, deixem de existir ou tenham o seu valor de mercado bastante reduzido.

Empresas interessadas em abrir o capital, ou já com capital aberto e desejando receber investimentos do exterior, são grandes interessadas em avançar no tema, haja vista a crescente lista de exigências dos investidores em relação ao tratamento dado às minorias. Portanto, cuidar e relacionar-se adequadamente com a diversidade é o correto e fazer e é lucrativo.

Como tem sido a repercussão em relação a seu artigo?
O advento do ESG [Environmental, Social, Governance], que veio para ficar, as cartas como a que escreveu o Larry Fink, CEO do Black Rock, reforçando a necessidade da inclusão social e manifestando seu desapontamento ao ver como a questão dos recursos humanos é deixada de lado nos conselhos, são alguns, de uma série de fatos, que me levaram a tratar, especificamente, da questão LGBTQIA+ em conselhos.  Talvez eu tenha sido o primeiro conselheiro no Brasil a tomar essa atitude, e a repercussão tem sido positiva. Seguirei adiante. Nesta e em outras pautas. Tenho certeza de que muitas pessoas se identificarão com a minha história e terão a compreensão de como tudo poderia ter sido diferente, mais leve e menos doloroso. E que, se ainda vivem em dor, que há luz no fundo do túnel, pessoal e profissionalmente. Se, de alguma forma, eu estiver auxiliando aqueles que ainda estão sofrendo e com medo de mostrar quem são, meu objetivo já terá sido parcialmente atingido.

De outro lado, minha exposição pessoal como integrante de grupo de diversidade LGBTQIA+ também serve para demonstrar às empresas, seus conselhos e acionistas, que a diversidade, em algum grau, já está aí, presente. Mas é uma pauta que precisa avançar. Tenho a firme convicção de que agrego valor nos conselhos onde estou e de que o tratamento adequado dos recursos humanos, criando um ambiente inclusivo e seguro, é um caminho sem volta. Lento, muito lento, mas sem volta. E eu desejo contribuir para que essa velocidade seja aumentada.

Se eu conseguir atingir também as empresas, os acionistas e a sociedade em geral, terei atingido integralmente meu objetivo, que é o de buscar chamar a atenção para a importância de haver um ambiente empresarial mais inclusivo, mais acolhedor e mais justo – para comunidade LGBTQIA+ e outras grupos minorizados.

Você hoje está à vontade com sua sexualidade. Sempre foi assim?
Hoje me sinto bem com a minha sexualidade e com quem sou, pessoal e profissionalmente. Nem sempre foi assim. Na juventude, tive um relacionamento com uma mulher incrível, por cerca de cinco anos. Resolvi terminá-lo, mesmo a amando, para que eu pudesse me entender. Complicado seguir amando uma mulher e ao mesmo tempo passando a sentir atração por homens. Por isso, a necessidade de afastamento, como autopreservação e como proteção a ela.

Estávamos no final da década de 1980, início da de 1990. A AIDS estava no auge e qualquer diagnóstico da doença representava, à época, uma sentença de morte de curto prazo, além do aumento do estigma sobre os gays. Então, a todo turbilhão de sentimentos pelos quais passei, silenciosa e dolorosamente, agregou-se o medo de ser contaminado por um vírus que ninguém sabia bem o que era.

Somente saí do armário, para minha irmã e mãe, quando encontrei o meu atual companheiro, pois senti que valia a pena. Dei-me conta de que havia encontrado o amor da minha vida e o meu companheiro de jornada. Isso se provou verdadeiro, pois em outubro de 2021 comemoraremos 32 anos de relacionamento.

Quando acontece algo assim na casa da gente, é como se houvesse caído uma bomba no meio da sala. É natural. Comigo não foi diferente. Era compreensível que assim fosse, pelo menos naquela época. Muitas expectativas são frustradas, de familiares, amigos e as nossas próprias. Ocorre uma verdadeira explosão de sentimentos, indagações, dúvidas, preocupações, medos, rupturas, preconceitos que, para tratar e vencer, é necessária muita serenidade e compreensão – nossa e daqueles que amamos e nos amam.

Passamos por tempos realmente difíceis, mas com o apoio de profissionais competentes e de pessoas que nos amavam como éramos, e que não nos abandonaram, aos poucos fomos levando a vida para a frente. Sim, havia piadas, rumores, fofocas – “o fulano virou gay…”

Deixei, ou melhor dizendo, deixamos de ser convidados para determinados grupos que anteriormente frequentávamos, que eu ou ele, individualmente, frequentávamos antes de nos conhecer. Houve danos colaterais relevantes à época, com os quais tivemos de conviver.  Foi preciso muito amor, companheirismo e coragem para, há mais de 30 trinta anos, ousar viver algo que era totalmente discriminado e repudiado socialmente.

Somos um núcleo familiar formado por dois homens.

Pelo fato de nós dois termos tido relações heterossexuais prévias, não faltou quem dissesse, à época, que havíamos enlouquecido, que éramos depravados, desavergonhados e que iríamos nos dar muito mal, pessoal e profissionalmente. Não raro escutamos, dos poucos que tinham a coragem, e o mau gosto, de assim se manifestar: “Mas, e aí? Viraram o fio da navalha? Agora são bichas?”. Ou, ainda, termos sabido que antigos amigos, que comentaram com outros, que não iam em casa de “puto”. De novo, danos colaterais.

Por que a nossa orientação sexual abala tanto as pessoas? Deixamos de ser quem somos?

O fato é que, passadas três décadas, o mundo foi mudando e as pessoas foram sendo, gradativamente, obrigadas a mudar seus comportamentos – ainda que, muitas, apenas quando estão na nossa frente.

Não se espera aceitação, mas se exige respeito. E nunca nos faltou coragem para isso. Mesmo quando vários passaram a não nos aceitar mais como parte de sua roda de relacionamentos. Risinhos e burburinhos que aconteciam quando chegávamos a um hotel, por exemplo, em função de acomodação escolhida ser cama de casal, eram veementemente rechaçados por nós na hora. Sem concessões.

O fato é que hoje me sinto sereno e agradecido por ter tido um relacionamento com uma mulher espetacular e por ter um relacionamento maravilhoso com um companheiro incrível, com quem quero viver até morrer. Acho que desapontamos aqueles que, há cerca de trinta anos, vaticinaram o nosso fracasso pessoal e profissional.

Notícia publicada originalmente no Época Negócios e disponibilizada diretamente pelo Autor.

Publicado na CompliancePME em 15 de junho de 2021