Por Aurora Barros*

O combate ao trabalho escravo e análogo à escravidão permanece como um dos maiores desafios da sociedade brasileira contemporânea. A atuação estatal, especialmente por meio do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), tem se intensificado com instrumentos normativos e administrativos que visam não apenas identificar e punir os infratores, mas também induzir comportamentos empresariais éticos e responsáveis.

Nesse contexto, a Portaria Interministerial nº 18/2024, editada pelos Ministérios do Trabalho e Emprego, dos Direitos Humanos e Cidadania, e da Igualdade Racial, atualizou os critérios e procedimentos para o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, conhecido popularmente como “Lista Suja”.

O que caracteriza o trabalho escravo ou análogo à escravidão?

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, configura-se o crime de redução a condição análoga à de escravo quando há:

Trabalho forçado – quando há coerção física ou psicológica para que o trabalhador realize determinada atividade contra a sua vontade. Exemplo: impedir que o trabalhador abandone o local de trabalho ou usar ameaças para mantê-lo em serviço.

Jornada exaustiva – quando há exigência de esforço excessivo que compromete a saúde, segurança ou dignidade do trabalhador. Exemplo: jornadas muito longas sem descanso, sem pausas ou sem condições mínimas de recuperação física.

Condições degradantes de trabalho – quando as condições do ambiente são tão precárias que ofendem a dignidade humana. Exemplo: falta de higiene, alojamentos insalubres, ausência de água potável, alimentação inadequada, ou inexistência de equipamentos de segurança.

Servidão por dívida – quando o trabalhador é obrigado a permanecer no serviço para quitar dívidas ilegítimas ou abusivas com o empregador. Exemplo: endividamento artificial criado pelo empregador (adiantamentos, transporte, alimentação) para manter o trabalhador preso à atividade.

Portanto, o trabalho análogo à escravidão não depende de confinamento físico.
A jurisprudência e os órgãos de fiscalização (como o MTE e o Ministério Público do Trabalho) reconhecem que basta a violação grave da dignidade humana, ainda que o trabalhador possa se locomover fisicamente, para configurar o crime.

Além do previsto no Código Penal, a Portaria Interministerial dispõe que, considera-se risco a direitos humanos e trabalhistas a situação na qual, devido a circunstâncias fáticas, há possibilidade de violação:

– às normas de proteção ao trabalho, incluídas as obrigações de segurança e saúde no trabalho aplicáveis de acordo com a legislação;

– à proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre a pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos e de qualquer trabalho a pessoas com idade inferior a 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos;

– à proibição do trabalho infantil, em especial das piores formas de trabalho para crianças e adolescentes, na forma disciplinada no art. 3º da Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 178, de 14 de junho de 1999, e promulgada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, que compreende:

a) todas as formas de escravidão contemporânea ou condições análogas à escravidão, assim como venda e tráfico de crianças e recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;

b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas;

c) utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; e

d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança, conforme disciplinado no Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que aprovou a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil – Lista TIP;

– à proibição de submissão de trabalhador a condições análogas à escravidão, seja, alternativamente, por meio de sua submissão a trabalhos forçados, a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho, a servidão por dívidas, a manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho, a cerceamento do uso de qualquer meio de transporte ou a apoderamento de documentos ou objetos pessoais com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;

– à proibição do tráfico, interno ou internacional, de pessoas e de violência e assédio no ambiente de trabalho, entendidos como o conjunto de comportamentos ou práticas inaceitáveis, ou de suas ameaças, de ocorrência única ou repetida, que visam causar, causam, ou sejam suscetíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico;

– à proibição de desrespeitar a liberdade de associação, respeitando-se o que segue:

a) os trabalhadores são livres para formar ou se associar a sindicatos;

b) a formação, adesão e filiação a um sindicato não devem ser usadas como motivo para discriminação ou represálias injustificadas; e

c) os sindicatos podem operar livremente e de acordo com a lei, o que inclui o direito de greve e o direito de negociação coletiva;

– à proibição de qualquer tipo de discriminação, direta e indireta, entendida como toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, idade, estética, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, religião ou crença, cultura, opinião política, etnia, nacionalidade ou origem social, estado de saúde, deficiência, estado civil, situação familiar, reabilitação profissional, entre outras, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão;

– à proibição de retenção salarial dolosa, garantindo-se informações compreensíveis e idôneas sobre valores recebidos e descontados e, pelo menos, o salário-mínimo determinado pela lei ou instrumento convencional aplicável, ainda que se trate de remuneração variável;

– à proibição de que o uso de segurança privada resulte em:

a) tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;

b) malferimento da vida ou da integridade física; ou

c) prejuízo à liberdade de associação e à liberdade de organização.

Além da observância do cumprimento de outras disposições que trata de responsabilidade civil, penal ou administrativa regularmente estabelecida que, com relação à matéria, sejam incluídas em legislação esparsa e nos tratados internacionais e convenções de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte, bem como oriundas de convenções e acordos coletivos de trabalho.

Diante do exposto, é um rol bastante extenso em que as organizações públicas e privadas precisam ter uma atenção especial para não ferir os aspectos representativos de ofensa à dignidade da pessoa humana.

A máxima “não fazer aos outros o que não se quer para si” é um filtro ético de fácil aplicação e que pode mitigar riscos de afronta à dignidade da pessoa humana que têm como consequências aplicações de sanções e de perdas financeiras e reputacionais significativas.

Impactos da inclusão no cadastro sobre a participação em licitações

A Lei nº 14.133/2021 exige, em seu artigo 63, que as empresas licitantes comprovem regularidade fiscal, trabalhista e integridade para fins de habilitação.

Embora a Portaria Interministerial nº 18/2024 não imponha proibição automática de participação em licitações para as empresas incluídas no cadastro, a presença na “Lista Suja” pode gerar consequências práticas e jurídicas, sobretudo quando:

  1. O edital prevê expressamente a vedação de participação de empresas que constem em cadastros de irregularidades trabalhistas;
  2. Há cláusulas contratuais de responsabilidade social e sustentabilidade, vinculadas aos critérios de integridade e boas práticas;
  3. O órgão licitante adota critérios ESG (Environmental, Social and Governance) ou de integridade social como fator de desempate ou pontuação técnica.

Além disso, a manutenção de contratos com empresas que figuram na “Lista Suja” pode gerar questionamentos por parte dos órgãos de controle, do Ministério Público e da sociedade civil, acarretando danos reputacionais e risco de anulação de contratos administrativos.

O papel do Compliance na prevenção de riscos trabalhistas e reputacionais

O Compliance é instrumento importante na prevenção e mitigação de riscos relacionados a práticas ilícitas, incluindo o trabalho análogo à escravidão.

Esse programa, quando estruturados de forma efetiva, incorporam mecanismos como:

  • Mapeamento e avaliação de riscos trabalhistas na cadeia produtiva;
  • Códigos de conduta e políticas de direitos humanos;
  • Canal de denúncias independente e protegido;
  • Auditorias e due diligence de fornecedores e prestadores de serviço;
  • Treinamentos periódicos sobre ética, direitos humanos e conformidade legal;
  • Planos de resposta e remediação em casos de suspeita ou ocorrência de irregularidades.

Dessa forma, o Compliance atua não apenas para mitigar riscos de corrupção e fraude, mas também como um mecanismo de governança trabalhista, prevenindo a inclusão da empresa em cadastros negativos e reforçando sua imagem institucional perante clientes, investidores e o poder público.

Conclusão

A Portaria Interministerial nº 18/2024 consolida o compromisso do Estado brasileiro com a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, estabelecendo instrumentos de controle e transparência.

No âmbito das licitações públicas, embora a inclusão na “Lista Suja” não gere automaticamente a inabilitação, ela pode resultar em barreiras práticas e reputacionais relevantes, especialmente em certames que valorizam a integridade e a responsabilidade social.

Assim, a adoção de programas de Compliance robustos — que contemplem políticas de direitos humanos e de governança ética — constitui não apenas um requisito de conformidade, mas um diferencial competitivo e de sustentabilidade empresarial, garantindo que a atuação corporativa esteja alinhada aos princípios da legalidade, moralidade e probidade administrativa.

*Aurora Barros, Mentora Berçário de Empreendedores, Advogada, Auditora-líder em Compliance, Membro de OCCA Olinda Creative Community Action, Coordenadora e Professora MBA em Compliance e ESG e Mestre em Indústrias Criativas

Disponível originalmente no Movimento Econômico. Publicado na CompliancePME em 22 de outubro de 2025