É recorrente a eclosão de novos conceitos e princípios no campo da administração que reverberam na agenda governamental com implicações diretas nas estruturas das organizações e nas políticas públicas, como também no meio acadêmico. A bola da vez agora é a integridadeConjunto de escolhas que estejam em sintonia com as crenças pessoais e os valores da empresa, prezando pela ética nas tomadas de decisões., o mais novo conceito mágico de gestão[1], que possui uma miríade de definições com alta carga de juízo de valor e positividade. Isso, em certa medida, atrapalha a capacidade dos analistas em definir precisamente seu significado e se aprofundar nas suas limitações. Diante da atual priorização da temática de integridade púbica, torna-se fundamental avançarmos na construção de conhecimento científico aplicado, direcionado a ampliar o entendimento do conceito, naturalmente afetado pelas diversas e dinâmicas transformações em curso e, dessa forma, qualificar esse debate no âmbito do setor público.
Integridade pública não é uma novidade, embora venha passando por diversas modificações nos últimos anos. Leo Huberts a define como “a conformidade com valorescrenças julgadas corretas em relação a interações com outras pessoas ou empresas. morais e normas relevantes”[2], que tende a variar de acordo com o contexto e pode ser atribuído tanto a indivíduos quanto a organizações. Considerando a relação entre a promoção de integridade com a prosperidade, a justiça social e o desenvolvimento econômico dos países, organismos multilaterais vêm reforçando essa questão. A Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE(OCDE): no combate mundial à corrupção, a OCDE desempenhou papel importante pois seus Estados membros firmaram a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais...), por exemplo, tem ampliado o entendimento, definindo como o “alinhamento consistente e à adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público”[3]. Nessa perspectiva mais ampla, integridade na gestão pública não se restringe apenas ao combate à corrupçãoEtimologicamente, o termo corrupção surgiu a partir do latim corruptus, que significa o "ato de quebrar aos pedaços", ou seja, decompor e deteriorar algo. É o ato ou efeito de..., na medida em que incorpora também as dimensões de transparênciaÉ o que se pode ver através, que é evidente ou que se deixa transparecer. É a virtude que impede a ocultação de alguma vantagem pessoal., dados abertos, prevenção à conflito de interessesÉ um conjunto de condições nas quais o julgamento de um profissional a respeito de um interesse primário tende a ser influenciado indevidamente por um interesse secundário. etc.
Essa crescente complexificação repercute em um conjunto de medidas e normativos de órgãos de controle, mas também de outros setores do governo. O gráfico abaixo ilustra parte dessa evolução recente na esfera federal, onde é possível observar não apenas o protagonismo da CGUControladoria Geral da União (CGU): é um órgão federativo de controle interno que atua na defesa do patrimônio e na transparência das receitas, despesas e atividades da gestão pública. Nos... na estruturação do Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação (Sitai), como também o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) com o seu programa Integra+MDHC[4], e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGISP), com o Pro-Integridade[5]. Esses passaram a fomentar a agenda da integridade nas suas políticas finalísticas, adicionando outras diretrizes, tais como o respeito aos direitos humanos, diversidade e participação social, em uma abordagem ampliada de integridade.
Nesse contexto, é preciso decifrar a esfinge da integridade no âmbito governamental, pois como dito na lenda, ao não se fazer isso, ela pode nos devorar. Existem questões complexas na implementação dessa agenda que demandam debate qualificado e estudos empíricos, e que abordem aspectos de efetividade dessas iniciativas, bem como a relação desse tema com outros conceitos mágicos já mais sedimentados na realidade brasileira. Não obstante, um segmento vem tendo uma participação acanhada: a academia. Em uma rápida pesquisa na plataforma Spell de periódicos da Anpad[6], é evidente o caráter embrionário das publicações de integridade quando comparado aos demais conceitos mágicos da administração. Nos últimos vinte anos, enquanto governança, inovação e transparência possuem 219, 179 e 162 trabalhos publicados respectivamente, integridade pública foi objeto de apenas 28 estudos.
No sentido de contribuir para reversão desse cenário, duas iniciativas foram recentemente lançadas. A primeira é a chamada para dossiêÉ uma coleção de documentos ou um pequeno arquivo que contém papéis relativos a determinado assunto, processo, empresa ou pessoa. especial sobre Integridade Pública da Revista da CGU[7], que convida acadêmicos para colaborarem com reflexões teóricas, pesquisas empíricas (quantitativas e qualitativas) e avaliações aplicadas do tema, sob a ótica da perspectiva abrangente do conceito, incluindo o foco na promoção da diversidade racial e de gênero, e os efeitos da adoção de novas tecnologias nas políticas públicas. Além disso, estão abertas submissões para o programa Integridade em Debate, parceria entre a CGU e a Enap, que concede bolsas de pesquisa para a produção de policy papers sobre diferentes dimensões e questões latentes da temática[8].
Em síntese, torna-se fundamental o aprofundamento dessa linha de pesquisa de modo a qualificar o processo decisório e adequar essas visões ao um mundo cada vez mais ’em tempo real’ e de políticas públicas baseadas em evidências. Iniciativas como essas refletem a crescente preocupação da sociedade e dos órgãos de controle e gestão em fortalecer as capacidades estatais no sentido de combater a corrupção, com também propiciar as bases para a administração pública cada vez mais efetiva, participativa e inclusiva e, dessa forma, elevar a confiança cidadã, pilar da democracia.
Notas
[1] Hupe, P. & Pollitt, C. The magic of good governance. Policy and Society, v. 13, n. 5, p. 641-658, 2010.
[2] Huberts, L. The Integrity of Governance, What It Is, What We Know, What Is Done, and Where to Go. Palgrave Macmillan London, 2014. https://doi.org/10.1057/9781137380814.
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[3] OCDE. Recomendação do Conselho da OCDE sobre Integridade Pública, Paris, 2017. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/ethics/recommendation-public-integrity/.
[4]https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/201cintegra-mdhc-servira-como-exemplo-para-o-brasil201d-afirma-silvio-almeida.
[5] https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/programa-pro-integridade-comeca-suas-atividades-pelo-arquivo-nacional.
[6] Pesquisa realizada na plataforma http://www.spell.org.br/ no dia 31/09/2023 com base na menção aos termos integridade pública, inovação pública, governança pública e transparência pública nos resumos de trabalhos da área de administração.
[7] https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/announcement/view/32.
[8] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/09/cgu-e-enap-lancam-edital-para-10-bolsas-de-pesquisa-do-programa-catedras-brasil.
Por Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e realiza estágio pós doutoral no IESC/UFRJ
Por Pedro Cavalcante, Doutor em Ciência Política (UnB) e Professor do Mestrado e Doutorado em Administração Pública no IDP e Enap
Publicada originalmente no Estadão