O Decreto 11.129 de 12 de julho de 2022 alterou a regulamentação da Lei Anticorrupção de 2013, que foi originalmente regulamentada em 2015 pelo Decreto 8.420. De nossa atuação profissional pudemos ver que muitos stakeholders privados e públicos esperavam a regulamentação para poder desenhar e implementar a sua política interna de compliance.

Quando há a aprovação de uma lei, não necessariamente se necessita de regulamentação adicional para iniciar sua aplicação.

Em especial quando se considera a realidade de empresas transnacionais, é muito comum que os parâmetros estabelecidos de conformidade sejam bastante superiores ao que a legislação pátria determina, seja por estarem sujeitas às leis mais duras de seus países de origem ou por pressão de stakeholders institucionais (em especial, investidores e a sociedade civil). Dessa forma, a regulamentação de uma Lei Anticorrupção, para essas empresas, pode funcionar mais para dar segurança jurídica sobre quais podem ser as consequências de determinado ato, do que propriamente ser um garantidor de enforcement.

O uso do anglicismo não foi à toa. O enforcement de legislações anticorrupção nos precedentes internacionais vem da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas independentemente de culpa ou dolo. É a chamada responsabilização objetiva. Esse tipo de responsabilização já estava destacada no artigo 5º da Lei Anticorrupção, mas o que se espera com a nova regulamentação é mais clareza quanto a sua aplicação.

O Decreto 11.129 estabelece o procedimento para responsabilização administrativa (PAR), desde a abertura da investigação preliminar até o desfecho do processo administrativo disciplinar. É notório que esse decreto considera a experiência da investigação da Lava Jato e dá mais clareza quanto aos aspectos processuais do PAR – por exemplo, contagem de prazo de intimações, produção de provas, os parâmetros da comissão investigadora na produção do relatório final e o fechamento e negociação de acordo de leniência.

No âmbito do Poder Executivo federal, o papel da Controladoria-Geral da União (CGU) parece ser mais facilmente identificável como corresponsável pela condução e julgamento do PAR, mas nos entes subnacionais talvez haja poucas condições de se conduzir investigações de alta complexidade e fazer acordos de leniência. Isso é especialmente preocupante pois a repercussão nas empresas pode ser grande.

Além da multa — aliás, agora com parâmetros bem definidos — da decisão administrativa sancionadora e do encaminhamento do processo para a via judicial, existe um evidente dano à imagem que vai além. A legislação considera essa realidade das empresas quando estabelece também os critérios de avaliação dos programas de conformidade das pessoas jurídicas, bem como a criação de um Cadastro Nacional de Empresas Idôneas e Suspensas e o Cadastro Nacional de Empresas Punidas.

Nenhuma empresa que preza por sua reputação estará confortável em ver seu programa de conformidade desaprovado pelo governo brasileiro, ou pior, ter sua marca grafada como inidônea em um cadastro oficial. Nesse aspecto o arcabouço legal brasileiro parece caminhar na direção de fomentar uma cultura de ética e conformidade (ou compliance) que transcende a mera imposição de multas e impossibilidade de contratação com a administração

Por que fomentar essa cultura é tão importante? Ora, pelo contrafactual, já responderíamos que o artigo 37 da Constituição Federal de 1988 determina que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Se esses princípios constitucionais fossem cumpridos, não teríamos Lava Jato, certo?

O importante é que quando há uma construção coletiva de comportamento ético, há uma coesão social em punir menos os erros e premiar mais os acertos, ou pelo menos ser mais tolerante diante do contraditório. Em outras palavras, haveria uma valorização maior na entrega de um prêmio sobre ética do que atenção midiática exacerbada a um ex-governador preso. A imprensa tem um papel a desempenhar aqui: conhecer essa legislação, celebrar os bons agentes e não mais confundir lobby com corrupção.

O Instituto de Relações Governamentais (Irelgov) tem promovido esses debates desde sua fundação para ter um marco regulatório claro e efetivo. Mas um dos aspectos mais importantes trazidos pelo Irelgov é que a iniciativa privada tem preponderância no desenho dessa política pública — afinal, a atuação prática das empresas impacta a vida social mais fortemente do que a legislação por si só. Nesse sentido, ter uma boa legislação de baixa adesão e aplicabilidade causaria mais insegurança jurídica.

Por certo que a nova regulamentação aporta o amadurecimento institucional, pois pressupõe diálogo e consultas aos agentes econômicos dentre outros agentes públicos. Com isso, se espera que a alta administração dessas instituições implementem a fortiori a política de compliance.

A CGU declara que “foram instaurados um total de 1.154 processos administrativos de responsabilização, resultando na aplicação de um montante de multas financeiras superior a R$ 270 milhões. No mesmo período, foram celebrados 19 acordos de leniência que implicaram no compromisso de devolução de mais de R$ 15 bilhões para os cofres públicos” [1].

Outro item de destaque é o escopo de atuação em que a pessoa jurídica brasileira que cometa a infração no exterior, ainda que parcialmente, se enquadrará nessa norma. Esse é um reflexo da internacionalização econômica do país que em determinado momento teve que sinalizar anuência ao UK Bribery Act e ao Foreign Corrupt Practices Act americano, que também aplicam sanções a agentes que cometam atos de corrupção em países estrangeiros.

A maior alteração vem do artigo 57 do Decreto 11.129 referente à aplicação do Programa de Integridade, indicando diretrizes da Recomendação da OCDE sobre Integridade Pública que aponta materializar o esforço nessa implementação, e não é apenas declaratório:

I — Comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa, bem como pela destinação de recursos adequados;
II — Padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente do cargo ou da função exercida;
III — Padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados.
Assim como na política identitária de combate ao racismo “Não basta não ser racista, temos que ser antirracistas”, dizemos que “Não basta ser íntegro, temos que ser anticorruptos”. Temos pouco mais de 60 dias até o primeiro turno das eleições de 2022. Esperamos que as inovações à legislação estimulem elegermos políticos antirracistas, íntegros e anticorruptos.

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As informações e opiniões neste texto são de responsabilidade dos autores e não reflete necessariamente o posicionamento do Instituto de Relações Governamentais.

[1] Controladoria-Geral da União. https://www.gov.br/corregedorias/pt-br/faq/faq-decreto-no-11-129-de-11-de-julho-de-2022. Acesso em 20/7/2022

Wagner Parente – CEO da BMJ e conselheiro do IRELGOV (2020-22/2022-24)
Anselmo Takaki – Consultor de Relações Institucionais e Governamentais. Membro fundador do IRELGOV e ex-conselheiro do instituto (2016-2018)

 

Originalmente publicado no JOTA

Publicado na CompliancePME em 1 de agosto de 2022