Nos últimos oito anos, desde a aprovação da Lei Anticorrupção (12.846/2013), as empresas brasileiras avançaram na adoção de medidas de conformidade. Um conjunto de boas práticas de gestão já começa a ser construído nas companhias, mas o principal desafio agora é aprofundar uma nova cultura, não somente em todos os níveis dentro das empresas, mas na própria sociedade.

Depende desse engajamento a garantia de ações de conformidade — ou compliance, no termo em inglês — sejam efetivas no ambiente corporativo e não só uma peça decorativa de marketing sob a agenda ESG (que resume políticas ambientais, sociais e de governança na sigla em inglês), cada vez mais cobrada por consumidores e investidores.

Essas foram algumas das conclusões dos participantes do evento on-line “Governança no setor privado e público: lições e desafios”, na manhã desta terça-feira.

O encontro foi uma realização do jornal O GLOBO com patrocínio da Aegea Saneamento. A foi transmitida nos perfis do jornal no YouTube e no Facebook e a íntegra continua disponível nestes canais para serem revistas e compartilhadas.

Veja como foi o debate no vídeo.

Participaram da live Fábio Galindo, presidente do Conselho de Administração da Aegea Saneamento; Lucio Martins, diretor de Compliance da J&F Investimentos (controladora da JBS); Olga Pontes, diretora de Compliance da Novonor (ex-Odebrecht); Ricardo Coutinho de Rezende, sócio e compliance officer da LBCA; e Roberto Livianu, procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção. O debate foi mediado por Renato Andrade, diretor da Sucursal do GLOBO em São Paulo.

Antes e depois da Lava-Jato

A Operação Lava-Jato, que expôs casos de corrupção envolvendo funcionários da Petrobras, políticos e empresários, aumentou as exigências dos brasileiros sobre o relacionamento entre empresas privadas e o governo e apontou a necessidade de coibir a ingerência política nas estatais.

Em 2016, o Congresso aprovou a Lei das Estatais (13.303/16), que estabeleceu regras mais rígidas para compras, licitações e nomeações de diretores de empresas controladas pelo governo, além de prever uma política de indicações para conselhos de administração. Ainda assim, tentativas do governo de influenciar a administração de estatais têm provocado ruídos.

Os participantes do debate compartilharam experiências e reconheceram os esforços das companhias no sentido de aperfeiçoar sua profissionalização e garantir a integridade de processos e decisões. No entanto, concordaram que ainda há desafios a serem vencidos para que a cultura de conformidade — ou compliance, no termo em inglês — seja perpetuada, de forma sustentável, para as próximas gerações.

As políticas ESG não podem ser apenas um modismo de prateleira. Todos os debatedores frisaram que o pilar da governança precisa ser reforçado para que os outros valores preconizados pela sigla sejam incorporados à prática não só por uma questão de imagem, mas como uma forma de preservar a geração de valor agora e no futuro.

Olga Pontes: Legado para as próximas gerações

Olga Pontes, diretora de Compliance da Novonor (ex-Odebrecht) avaliou que há um comprometimento maior do setor privado em mensurar e mostrar à sociedade as práticas de uma gestão ética e transparente.

O combate à corrupção, diz a executiva, deixou de ser um tema exclusivo das autoridades e passou a ser de todos — companhias e cidadãos. E cabe às companhias influenciar sua cadeia de valor para que tenha as mesmas atitudes.

Para ela, isso já vem acontecendo, com impacto positivo em fornecedores e clientes:

— E a educação pode acelerar esse processo, com ensino na graduação, e até na escola primária no futuro, do compartilhamento das melhores práticas. É um processo transformacional que vai gerar um legado para as próximas gerações.

Fabio Galindo: Intolerância à corrpução

As manifestações de 2013 e a Lava-Jato, a partir de 2014, trouxeram à tona a discussão dos valores adotados e praticados por empresas privadas na relação com o setor público, bem como a necessidade de maior transparência nos processos, lembrou Fábio Galindo, presidente do Conselho de Administração da Aegea Saneamento.

Esse cenário favoreceu a criação da Lei Anticorrupção, que provocou uma reorganização das empresas privadas na área de conformidade, ele destacou:

— Houve um movimento da iniciativa privada, da sociedade e do setor público na construção de uma cultura nacional de intolerância à corrupção. E, nos últimos dez anos, evoluiu o debate da importância da integridade e da ética na gestão das companhias, que se fortalece com a temática ESG.

Galindo observou ainda que os conselhos de administração das empresas deixaram de apostar numa agenda apenas financeira e operacional, mas passaram também a discutir temas diversos como impacto ambiental e cadeias de valor.

Lucio Martins: Influência sobre a cadeia de fornecedores

Lucio Martins, diretor de compliance da J&F Investimentos, controladora da JBS, observou que muita gente ainda tem dificuldade de entender o que é a governança e como o compliance se aplica à gestão das empresas.

Para ele, cabe às próprias companhias a missão de propagar essa cultura de boas práticas de gestão orientadas pela conformidade. Martins advertiu que o compliance deve ser um aliado dos executivos na tomada de decisão com integridade, sem introduzir burocracias ou estender prazos de processos dificultando o dia a dia da empresa.

O executivo da J&F também destacou o papel disseminador dessa cultura que as grandes empresas têm em relação à sua cadeia de fornecedores:

— Um fornecedor que hoje não aceita nossas regras de boas condutas não assina contrato. Isso gera efeitos concretos do outro lado. Propaga as boas práticas na cadeia de valor, e as empresas têm que evoluir nessa agenda para se relacionar com a gente.

Roberto Livianu: Separar ‘joio do trigo’

Roberto Livianu, procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, chamou a atenção para os avanços representados pela Lei das Estatais, de 2016, e também para as ameças de retrocesso que envolvem atualmente as empresas públicas.

Ele afirmou que as estatais não podem ser cabides de emprego ou atender políticos “da ocasião”, no que diagnosticou como um cenário de “compadrio” na esfera política. Ele observou que episódios como a troca de comando da Petrobras, em janeiro passado, a pedido do presidente Jair Bolsonaro, sem iniciativa do Conselho de Administração, indicam que ainda há um longo caminho a ser percorrido nas estatais.

Livianu também chamou a atenção para o retrocesso na transparência das informações do setor público, que é uma forma de coibir a corrupção. Nas empresas, o procurador avalia que muitas empresas estão adiantando agendas ESG apenas como peças de marketing, mas ele advertiu que o tema não é só modismo.

Para ele, será inevitável separar “o joio do trigo” e só as empresas que de fato estão mudando suas posições no sentido das boas práticas de governança serão recompensadas:

— A agenda ESG é uma tendência importante, e, por isso, é preciso que haja transparência para ver as empresas que vão nessa direção. A efetividade dos programas ESG tem que se impor com ações concretas e se espalhar para empresas grandes, médias e pequenas.

Ricardo Rezende: bem estar social deve ser meta das empresas

Ricardo Rezende, sócio e compliance officer da LBCA, ponderou que a Lei Anticorrupção brasileira é uma das melhores do mundo, mais ambiciosa que as similares americana e britânica, mas, na sua opinião, ainda precisa ser levada a sério por muita gente que acha que ela “não pegou”.

Ele observou que, para aprimorar a governança corporativa em todos os níveis da empresa é preciso investir em ações como códigos de conduta, canais de compliance, comitês internos que possam “empoderar” os colaboradores.

— Isso permite que o combate à corrupção seja consciente e constante, de forma sustentável — afirmou Rezende. — Custa caro ter uma boa governança? Na verdade o que custa caro é não ser transparente, não ser sustentável e não ser responsável tanto socialmente, quanto ambientalmente. As empresas que não seguem uma governança efetiva ficam mais vulneráveis.

Para Rezende, já passou a era em que as empresas buscavam apenas resultados econômicos e financeiros. Atualmente, as organizações precisam também ter no horizonte o bem estar social e coletivo.

Ele ainda observou que a democracia é fundamental para que se tenha uma mudança real nas empresas, já que um ambiente autoritário não permite que se estimule a participação de todos na agenda ESG nas empresas.

Novos parâmetros

O debate avaliou mudanças importantes feitas pela Lei Anticorrupção, como a que estabeleceu a possibilidade de as empresas serem responsabilizadas por crimes de corrupção praticados por seus gestores e previu o acordo de leniência como uma forma de redução da penalidade quando houver cooperação da companhia nas investigações.

Também foram previstas formas de punição como multas, devolução de vantagens ilícitas, além de perdas de incentivos e suspensão de atividades. Muitas empresas criaram departamentos de conformidade para para implementar essas boas práticas — em alguns casos até mesmo para garantir sua sobrevivência.

Agora, elas têm como desafio avançar na adoção de sistemas digitais de controle de informações, na direção do que preconiza a recente Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD): impedir que informações — inclusive de pessoas jurídicas — sejam usadas de forma irregular.

Originalmente publicada no O Globo

Publicado na CompliancePME em 27 de julho de 2021