Por Daniele de Oliveira Nunes*

Em 2023, a Lei Anticorrupção completa 10 anos. Aprovada em meio a investigações que monopolizaram o noticiário e envolveram políticos tradicionais e grandes empresas, ela é um marco nos esforços de combate à corrupção e promoção de uma cultura de integridade no setor privado. Após uma década desde a sua promulgação, é interessante avaliar as mudanças que provocou nas organizações e o que ainda deve evoluir.

A Lei Anticorrupção prevê que a pessoa jurídica que tenha cometido atos danosos à administração pública pode ser responsabilizada independentemente de culpa ou dolo e sancionada nas esferas administrativa e judicial. Se condenada na esfera administrativa, a organização pode ter publicada essa decisão, o que pode abalar sua reputação, e receber multa de até 20% do seu faturamento bruto.

A sanção mais adequada em cada caso depende de critérios como a gravidade da infração, vantagem obtida pelo infrator, sua situação econômica e sua cooperação na apuração. Se a organização tiver procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, bem como códigos de ética e conduta efetivamente aplicados, isso pode contribuir para uma sanção menos severa. A aplicação de sanção mais graves, como a suspensão das atividades e até mesmo a dissolução compulsória da organização infratora, pode acontecer na esfera judicial.

 

De que forma a Lei Anticorrupção contribui para as organizações?

As disposições legais estimularam as organizações a mudar seu comportamento, dedicando-se mais à criação e manutenção de uma cultura de integridade. Prevenir, detectar e corrigir condutas ilícitas passaram a estar entre as prioridades das organizações. Se, até então, muitas delas não tinham um programa de integridade ou sequer um código de conduta, esses passaram a ser definidos e implementados estratégica e cuidadosamente. Áreas de compliance foram estruturadas. Canais de denúncia, processos de due diligence e treinamentos de colaboradores e parceiros de negócios agora são comuns.

Ao prever, como critério para a aplicação das sanções que estabelece, a existência de um programa de integridade que abranja padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas a terceiros, a Lei Anticorrupção e seu regulamento também contribuem para que essa transformação aconteça em cadeia. Por causa dessa previsão legal, não ter instrumentos destinados a criar e manter uma cultura de integridade, atualmente, tem um impacto direto sobre os resultados das organizações.

É o que acontece com quem deseja ser fornecedor da Petrobras. A estatal, hoje, adota uma classificação de risco de integridade para todos os seus potenciais fornecedores – o Grau de Risco de Integridade, ou GRI –, impedindo que empresas consideradas de risco alto participem de suas licitações, salvo em hipóteses excepcionais. Essa classificação de risco é produto de uma due diligence feita pela estatal e guiada por diversos critérios, dentre os quais a existência de um programa de integridade que observe os parâmetros da Lei Anticorrupção e seu regulamento.

Como consequência, empresas que desejem fornecer serviços ou bens à Petrobras devem, por exemplo, ter códigos de conduta que proíbam retaliações e pagamentos de facilitação e evitem conflitos de interesse. Devem, ainda, treinar sua força de trabalho sobre o programa de integridade, manter canais de denúncias e procedimentos de investigação de casos de fraude e corrupção, incentivar denúncias e adotar procedimentos de due diligence de integridade no relacionamento com seus próprios fornecedores e parceiros.

 

Algumas críticas à Lei Anticorrupção

Mas apesar da inegável contribuição para a construção de uma cultura de integridade nas organizações, a Lei Anticorrupção não está imune a críticas. Uma delas é o seu foco exclusivo sobre pessoas jurídicas. Indivíduos envolvidos nos atos censurados pela Lei Anticorrupção – sejam eles agentes públicos ou não – até podem ser responsabilizados por sua conduta, mas somente caso ela seja reprovada por outras leis. Nesse caso, esses indivíduos estarão sujeitos somente às consequências previstas nessas outras leis.

Outra crítica diz respeito à avaliação dos programas de integridade, cuja existência e efetiva implementação podem levar à aplicação de uma sanção mais branda. É verdade que o regulamento da Lei Anticorrupção lista diretrizes para esses programas e destaca que a sua avaliação deve considerar as especificidades de cada organização. Mesmo assim, há, ainda, espaço para uma análise subjetiva da autoridade, o que traz insegurança jurídica para as organizações, que não sabem se seus programas de integridade serão considerados adequados se um dia vierem a sofrer sanções sob a Lei Anticorrupção. Como se não bastasse, exigir que organizações de menor porte ou com estruturas de governança mais enxutas sigam todas as diretrizes previstas no regulamento pode engessar sua operação com processos demasiada e desnecessariamente burocráticos, a ponto de estrangular suas atividades.

A colaboração das organizações na apuração das infrações é também um ponto sensível da Lei Anticorrupção. O incentivo da lei a essa colaboração é fragilizado pelo risco de que outras sanções sejam aplicadas à organização colaboradora em outras esferas, pelas condutas reveladas durante a colaboração. Para mitigar esse risco, órgãos de controle no âmbito federal celebraram com a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Justiça, em 2020, acordo de cooperação técnica com o compromisso de não aplicar ao colaborador no acordo de leniência sanções adicionais àquelas que ele já prevê. Mas o risco permanece, já que o compromisso não se estende a órgãos como o Ministério Público Federal e dos Estados, além dos tribunais de contas e da advocacia pública dos Estados.

Não há como negar a relevância da Lei Anticorrupção e a sua contribuição para a construção de uma cultura de integridade nos setores público e privado. Ela não é, contudo, a solução para a corrupção – até porque não há bala de prata capaz de eliminar um problema tão complexo.

Além da constante revisão da legislação de combate à corrupção, para que se adeque à sempre mutante realidade e não se perca em si mesma, é fundamental compreender que a construção de uma cultura de integridade nas organizações é uma jornada que jamais atinge um destino final. Ela exige uma preocupação contínua com a condução ética dos negócios, em cada detalhe, por cada colaborador e parceiro de negócios. Isso requer revisões e atualizações de normas, procedimentos, processos e sanções, adequando-os para que sejam eficazes em relação aos novos caminhos encontrados por aqueles que cometem infrações éticas e atos ilícitos.

*Daniele de Oliveira Nunes é advogada habilitada no Brasil e em Nova Iorque e sócia do escritório Leal Cotrim Advogados, especializado nos setores de infraestrutura, energia e óleo e gás.

Publicada originalmente no site da Exame

Publicado na CompliancePME em 2 de outubro de 2023