Publicado na CompliancePME em 5 de outubro de 2021

RIO — Servidores que cobram para realizar serviços públicos, desvio de material de unidades escolares e hospitalares, conduta irregular de superiores sobre seus subordinados e favorecimento em algumas licitações. Essas são algumas das denúncias que chegaram à Central Anticorrupção, criada pela Secretaria de Governo e Integridade do Rio em 25 de junho. Em três meses, houve mais de um relato por dia, envolvendo servidores e órgãos municipais, a grande maioria feita com o compromisso do anonimato. A prática de suborno sai na frente, com mais denúncias (15). Em seguida, empatados, vêm o assédio moral ou sexual e o enriquecimento ilícito (11 cada).

— Trata-se de um canal novo, e essa quantidade de denúncias revela que a população confia nele. É importante as pessoas entenderem que podem prestar as informações de maneira anônima, que não vão sofrer qualquer tipo de retaliação. Os nossos protocolos garantem ainda que o que disserem será valorizado e tratado pelo órgão envolvido. E também que faremos o acompanhamento do caso dentro das secretarias — ressaltou o secretário de Governo e Integridade, Marcelo Calero. — O importante é termos os cidadãos como parceiros, de modo a fazer chegar até nós ocorrências que estão na ponta.

Sem punição até agora

O canal, disponível por meio da Central 1746, recebeu 108 denúncias, apenas 33% com autor identificado. Desse total, 80 com dados que permitem levar adiante a apuração foram encaminhadas para as pastas. Entre elas, há situações envolvendo fraude, desvio de função ou finalidade, acúmulo de função, discriminação, favorecimento e nepotismo. Vinte e um relatos são chamados de “miscelânea”, quando há mais de uma irregularidade envolvida.

Até o momento, não foi aplicada nenhuma punição a partir de denúncias feitas pela Central Anticorrupção. Concluídos pelos órgãos, os processos podem ser encaminhados à Controladoria-Geral do Município, para avaliar a aplicação de sanções administrativas, e ao Ministério Público, que poderá propor ações criminais por improbidade administrativa.

Segundo Calero, oito dos casos tiveram a investigação encerrada pelas secretarias e um se transformou em investigação preliminar. O trabalho é feito sob sigilo.

— Às vezes, um detalhe pode acabar deixando escapar quem fez a denúncia ou onde o caso está sendo apurado, atrapalhando toda a investigação. O pessoal da Integridade ( Subsecretaria ) não quer nos passar números. Eu mesmo, como secretário, não os conheço em detalhes — diz Calero. — Tudo está no campo das denúncias. No caso das licitações, por exemplo, temos que verificar se não se trata de um factoide criado por quem perdeu a disputa. Quanto ao desvio de material, precisamos ver se o denunciante é alguém que queira prejudicar outro servidor. Então, essas apurações precisam ser extremamente criteriosas. Senão, a gente acaba colocando todo o mecanismo a perder.

Doutor em Direito pela Uerj e professor da UniRio e da Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ), Emerson Affonso da Costa Moura destacou que, embora a denúncia possa ser anônima, “ela deve ser fundamentada, trazendo informações que permitam investigar o fato e seu possível autor”. E qualquer punição precisa seguir normas rigorosas:

— Apenas após a conclusão de sindicância e de um inquérito administrativo, onde possa ser apurada a prática de ato de irregular, é que se instaura um processo administrativo disciplinar para aplicação de sanção. Nesse processo, deve ser garantido o contraditório, a ampla defesa.

Especialista em Direito Administrativo, Hermano Cabernite explicou que a Lei de Improbidade Administrativa em vigor prevê penalidades, que vão desde o afastamento até a perda da função pública e a suspensão de direitos políticos. No caso de enriquecimento ilícito, o agente público está sujeito à perda dos bens acrescidos irregularmente a seu patrimônio. O sequestro desse patrimônio, no entanto, depende de determinação judicial.

— Em decisão, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) enquadrou o assédio moral como improbidade administrativa, com base no artigo 11 da lei, dispositivo que considera como ato que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, legalidade e lealdade às instituições — declarou Cabernite. — Já o assédio sexual pode não ser tratado como improbidade. Mas se trata de crime previsto no Código Penal, com detenção de um a dois anos.

Mudança polêmica

Um projeto polêmico, aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, e devolvido com emendas à Câmara, altera a Lei de Improbidade Administrativa, de 1992. Limita a improbidade a dolo (quando há intenção de praticar o ato). Hoje, quando há culpa (sem intenção), o ato também pode ser considerado como tal. No fim de semana, uma liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu pontos da nova lei. Com isso, a pena de suspensão dos direitos políticos só será aplicada em casos dolosos.

— Acho necessária a responsabilização do agente público tanto por dolo como por culpa. No entanto, isso não livrará o servidor de responder civilmente por algo que implique prejuízo. Evidentemente, com a nova lei, ele não estará sujeito à perda do cargo, nem tampouco dos direitos políticos — disse Cabernite.

Costa Moura defende o projeto de lei:

— Só podemos punir por improbidade se houver intenção (dolo). Do contrário, o servidor será punido por um dos crimes contra a administração pública ou se sujeitará à restituição/reparação dos cofres públicos através de uma ação de ressarcimento. O novo projeto vem no sentido de evitar que sejam considerados atos de improbidade meras irregularidades ou ilícitos administrativos já punidos por outras leis.

Calero, que se elegeu deputado federal, é contrário ao texto de reforma proposto. Mas ele defende mudanças na atual legislação, que, na sua avaliação, vem promovendo injustiça e “um apagão administrativo no Brasil”, devido, por exemplo, à dificuldade de encontrar servidores que queiram ser ordenadores de despesas, temendo punições.

O secretário disse não acreditar que mudanças na lei possam atrapalhar o canal de denúncias e a aplicação de sanções administrativas ocasionais:

— Não tratamos de improbidade do ponto de vista penal. Eventualmente, pode haver algum prejuízo para punições penais.

Para denunciar casos de corrupção de modo anônimo, é necessário utilizar o portal, o aplicativo ou o telefone do 1746. Por WhatsApp ou Facebook Messenger, os chamados são sempre identificados. Em todas as situações, o denunciante recebe um número de protocolo para acompanhar o andamento do processo.

Publicada originalmente no O Globo