Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas e pesquisador do IESC/UFRJ
De forma surpreendente, a animação dos estúdios Disney “Encanto”, lançada em 2021, dirigida por Byron Howard e Jared Bush, estourou nas paradas de sucesso com a música “Não falamos do Bruno”, composição do também ator Lin-Manuel Miranda, e que ficou no topo das músicas mais ouvidas do ranking Hot 100 da Billboard, pela incrível marca de mais de três semanas não consecutivas.
Caso o leitor não tenha visto essa película de fantasia, ambientada na Colômbia, e com diversos aspectos interessantes nas entrelinhas, recomendo fortemente. Haverá spoilers nesse texto! Mas, voltando a falar de Bruno, a música trata de um personagem da trama que tem o dom de prever o futuro e pelas verdades que ele apresenta em suas previsões, começa a se tornar uma presença indigesta.
E após um momento de inflexão (vejam o filme e entenderão), ele se recolhe, em um quase banimento, para o porão da sua própria casa, e a sua família inventa uma história de cobertura sobre a sua partida. Mas na verdade todos sabem que ele se esconde ali, vivendo de restos, como mostra claramente a letra da música. Bruno vira a personificação de um tabu.
Mas, esse texto se destina a um espaço de discussão de políticas públicas. Não deveria estar na crítica de cinema? Perguntaria algum leitor nesse trecho da narrativa. Sim, mas de produções como essa, é possível se colher muita coisa do intertexto, e que pode se aplicar a temas diversos e relacionados as políticas públicas, inclusive a badalada questão da corrupçãoEtimologicamente, o termo corrupção surgiu a partir do latim corruptus, que significa o "ato de quebrar aos pedaços", ou seja, decompor e deteriorar algo. É o ato ou efeito de....
Sim, a corrupção, com a devida vênia, é o nosso Bruno (que é um baita personagem, diga-se de passagem). Mostra o pior de nós, aquilo que somos capazes de fazer na quebra das relações que geram prejuízo à sociedade. Mas ao mesmo tempo, é tida como um tabu, um assunto que não se comenta, no máximo no abstrato, em relação ao outro fictício. Como na canção: Não falamos da corrupção! Não, não, não!
Não falar de uma questão, ainda mais a corrupção, intrínseca nas relações humanas desde o início da civilização, não faz ela desaparecer. Pelo contrário! Mantém ela em uma zona oculta na qual ela atua, cresce e se enraíza, afetando assim a vida de todos. Sem admitir a existência de corrupção nas relações entre os governos, as empresas e a população beneficiária das políticas públicas, não é possível o estabelecimento de estratégias efetivas para a sua redução.
É verdade, a corrupção sempre habitou as páginas de jornal, seja na parte da política, como na seção policial. Mas, sempre como algo deplorável a ser combatido, que causa rostos ruborizados e espantos cotidianos. Figurinha fácil também no jogo político eleitoral, ao cabo, essa forma generalizada de tratar o fenômeno da corrupção, com a espetacularização do escândalo, contribui mais com a perda de confiança na sociedade, nos governos e nas empresas, do que com a sua efetiva mitigação.
A corrupção, entendida como um abuso de poderViolação de deveres inerentes às suas funções por parte de um indivíduo investido de poderes públicos, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo..., que quebra as relações do poder público com as suas partes, alterando finalidades para interesses pessoais e prejudicando interesses coletivos, deriva da delegação entre os atores, e da capacidade destes de fazerem coisas não pactuadas para o benefício próprio. Essa possibilidade permeia todas as relações da sociedade, e para se manifestar depende de um conjunto de fatores relacionados aqueles indivíduos e ao sistema no qual eles estão inseridos, entremeando questões subjetivas e estruturais.
Sob a égide da Constituição, o processo eleitoral delega, direta ou indiretamente, a condução das questões coletivas a representantes eleitos, e estes interagem com servidores da burocracia escolhidos por meio de processos objetivos de concursos e encarreiramento, e todos esses interagem por meio de políticas públicas frente a sociedade e seus diversos estratos, em um jogo de delegações e prestações de contas típico do ambiente democrático, no qual a corrupção é uma das ameaças mais relevantes.
Um desenho de relações e deveres entre atores, que necessitam de accountabilityTermo em inglês que pode ser traduzido como responsabilidade com ética e remete à obrigação, à transparência, de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados...., ou seja, de mecanismos que os façam serem responsivos em suas interações, para mitigar as chances de atuarem em interesse próprio, deturpando o atendimento à interesses coletivos. Um arco de possibilidades que só pode se extinguir se cessarem as relações e delegações, o que torna impossível a vida em coletividade. A corrupção é algo crônico e teremos que conviver com esta na vida social.
Frente a essa possibilidade imanente de corrupção, surgem mecanismos para mitigá-la. A éticaConjunto de ações normativas que guia o comportamento de uma organização ou de um indivíduo, estabelecendo boas relações sociais. A ética é o estudo da moral., a imprensa livre, a lei, os órgãos de controle, a transparênciaÉ o que se pode ver através, que é evidente ou que se deixa transparecer. É a virtude que impede a ocultação de alguma vantagem pessoal., a participação social, são exemplos de estruturas formais e informais que desenvolvemos ao longo da história, e que adotamos para mitigar essas quebras de relação, em uma visão bem institucionalista do tema.
Uma visão, inclusive, na qual falar de “corrupção zero” como uma meta factível é totalmente dissociado da realidade. A anticorrupção não é uma viagem a uma ilha paradisíaca, e sim uma luta constante do navio para atravessar uma tormenta. Uma visão dinâmica, de trabalho e vigilância constantes, e não uma batalha contra um inimigo delimitado, que será derrotado ao final.
Entretanto, é difícil falar nisso. Um tema árido, fazendo com que a corrupção seja o nosso Bruno, que nos mostra o nosso lado pior que não queremos ver, mas que está lá, vivo e saltitante. Diante do horror do Bruno, o “ser abismal”, é preferível confiná-lo ao porão, entre a negação do que todos sabem e a ojeriza irracional, que também é uma medida de negação.
O Brasil do Século XXI vive, progressivamente, um processo de quebra desse tabu, no qual a corrupção sai do canto escuro da negação, da existência apenas no mundo do outro, para subir de forma vertiginosa para a centralidade das discussões, permeando causas e consequências de tudo que envolve as políticas públicas. Sai do ostracismo de livros acadêmicos diretamente para o totalizante do botequim e das conversas cotidianas.
Nessa transmutação, a corrupção pula das páginas policiais e de política para uma gramática que poderia bem colocá-la na página de esportes. Uma visão na qual se tenta comparar graus de corrupção, se superestima o altruísmo como solução, e a corrupção passa a ser não uma possibilidade, mas um atributo derivado unicamente de aspectos morais relacionados as escolhas individuais dos agentes públicos. O Bruno sai do porão para ser jogado na fogueira, entre gritos de uma multidão portando foices.
É preciso conciliar visões, enxergando a corrupção com a complexidade que esse fenômeno reclama. Tentar entender a sua raiz a luz de pressupostos robustos, e a academia pode contribuir muito com isso, diminuindo a invisibilidade desse tema nas discussões da economia, da ciência política e do campo de públicas, ponderando e questionando diagnósticos e receituários hegemônicos, muitos deles ancorados em paradigmas difusos e que não se comunicam com a realidade.
No filme “Encanto”, a doce protagonista Mirabel só equaciona a crise que afetava a sua família e a relação com aquela comunidade quando, rompendo o tabu, vai ao encontro de Bruno, para entender o que se sucedeu e o que pode ser feito para evitar a catástrofe. O que se dá pela reconstrução das relações, na inauguração de um ciclo virtuoso. A mazela da corrupção também necessita de uma abordagem mais racional, que a enxergue como uma possibilidade que, para ser enfrentada, precisa ser entendida e contextualizada, inclusive em relação as políticas públicas.
Países com uma trajetória de sucesso na questão da corrupção investem em pesquisa sobre o tema, no desenvolvimento de normas, no fortalecimento de órgãos de controle, bem como de mecanismos democráticos de transparência e participação social. E mais ainda, sabem que essa questão é intrínseca às relações sociais, e que precisa ser enfrentada, sem desprezar que ela deriva de um contexto, que não pode ser desconsiderado nas discussões sobre a magnitude da corrupção, bem como dos meios para combatê-la.
Publicada originalmente no UOL