Alvejado por denúncias de assédio sexual, Pedro Guimarães, demitiu-se do cargo de presidente da Caixa Econômica Federal. A demissão levou ao afastamento do ex-chefe de gabinete, e de outros cinco consultores estratégicos que orbitavam no entorno da presidência. Como se sabe, a decisão ocorreu após um portal de notícias publicar uma reportagem revelando acusações de funcionárias da instituição sobre a conduta inapropriada e incompatível com o ambiente de trabalho do ex-presidente.

Acontecimentos como esses chamam a atenção para a inexistência da cultura da integridade no alto escalão do funcionalismo público, revelando a necessidade urgente de implantação de melhores políticas para a defesa dos direitos das mulheres a um ambiente de trabalho seguro e livre de toda forma de violência. Assim, a par da garantia de presunção de inocência conferida ao réu quanto à acusação de crime de assédio sexual, deve-se ter em mente que uma conduta que molesta e afeta diretamente as mulheres, ainda que não preencha todos os elementos de imputação do crime, em nada retira a responsabilidade social da instituição e a reprovabilidade do comportamento praticado.

A luta pela valorização, pelo respeito, pela igualdade, enfim, pela eliminação de toda forma de discriminação contra as mulheres deveria ser um dos objetivos centrais dos programas de compliance, no entanto, não é o que espelha o fatídico episódio.

Segundo a nota divulgada oficialmente pelo Conselho de Administração da Caixa, identificou-se, após apurações preliminares, a existência de uma reclamação recebida pelo canal de denúncias da instituição financeira em maio deste ano. A explicação dada para a ausência de instauração de um procedimento de investigação interna seria que o denunciante, anônimo, não teria fornecido informações suficientes para o início da apuração. De tal sorte, somente no final de junho, coincidindo com a revelação dos fatos pela imprensa, um novo conjunto de elementos teria sido fornecido pelo denunciante possibilitando o prosseguimento apuratório, que daqui por diante seguirá sob a responsabilidade de uma empresa independente.

Percebe-se pela nota oficial divulgada a clara intenção da instituição em demonstrar que age em conformidade com a Lei das Estatais (Lei 13.303/16), e que atua segundo as melhores práticas de governança corporativa. Sem dúvidas, requisitos formais de um bom programa de compliance foram mencionados naquela oportunidade, a dizer pela existência de um canal de denúncias gerido por uma entidade externa e independente, e a prerrogativa dada ao denunciante de manter-se no anonimato.

Afora isso, são abundantes as informações no site da Caixa acerca dos seus pilares de integridade. Encontra-se disponível ao público, inclusive, uma espécie de cartilha contendo perguntas e respostas, que detalha o funcionamento do canal de denúncias sem deixar de mencionar que os denunciantes receberão a devida proteção contra eventuais retaliações. Ocorre, entretanto, que a efetividade de um programa de compliance não se mede apenas dessa maneira.

Primeiro ponto: um programa de integridade, seja ele de uma empresa pública ou privada, não pode limitar suas atenções às políticas anticorrupção e antilavagem de dinheiro. Tão importante quanto prevenir a ocorrência de crimes que possam reverberar em prejuízos financeiros – sejam aos cofres públicos ou aos da própria instituição – é valorizar comportamentos éticos, de respeito e igualdade, no ambiente de trabalho.

Segundo ponto: se as denúncias são a melhor fonte de informações para a identificação de problemas, o canal por meio do qual elas são feitas precisa funcionar, não apenas no aspecto formal, evidentemente.

Pelo relato divulgado nos meios de imprensa, o temor dos funcionários da Caixa de denunciar internamente os casos de assédio envolvendo Pedro Guimarães estava relacionado não somente ao medo de retaliação, como ainda à desconfiança da inércia nos setores responsáveis por receber as queixas. E tal receio se mostrou legítimo, pois analisando-se os fatos revelados nas últimas semanas conclui-se pela negligência em um dos pilares dos programas de compliance que pouco se nota: o monitoramento.

Monitorar nada mais é do que verificar, continuamente, se a implementação do programa está se comportando da forma esperada. Trata-se de averiguar não somente se está sendo bem executado, como principalmente se as pessoas estão, de fato, comprometidas com as normas por ele implantadas, observando-se ainda se não surgiram no decorrer do tempo novos riscos.

No caso da Caixa, considerando as evidências, os aspectos estruturais das regras de boas práticas foram completamente respeitados, no entanto, a falta de monitoramento tornou o programa ineficiente, na medida em que funcionárias em busca da garantia de seus direitos não encontraram outra saída senão recorrer à imprensa, após o canal de denúncias da instituição não ter correspondido aos apelos recebidos.

Em regra geral, a depender do porte e do segmento da empresa, o monitoramento pode ser feito pelo responsável, ou por um comitê responsável, pelas atividades do programa. Não obstante, para garantir a efetividade desse pilar, para além das óbvias questões de corrupção e de lavagem de dinheiro, o compliance precisa de força, independência e suporte da alta administração. Seria leviano apontar os motivos que levaram à falha sem conhecer com maior profundidade a estrutura da instituição bem como os detalhes fáticos.

Por outro lado, hipoteticamente falando, concebendo um cenário ideal, se durante o monitoramento de um programa de conformidade uma falha como a não instauração de uma investigação interna decorrente de uma grave denúncia de assédio for identificada, o responsável pelo compliance reportará o achado, por exemplo, ao Conselho de Administração, que por sua vez buscará adotar as medidas corretivas para poupar a instituição de abalos à sua imagem e reputação, contribuindo ainda para a não perenização do assédio no mundo corporativo.

Pela compreensível comoção social que a imputação de um crime contra a dignidade sexual dirigida a uma pessoa do mais alto nível do funcionalismo público causa, tem-se dado muito destaque a este viés dos acontecimentos. Neste contexto, é bom que seja lembrado que a apuração da prática criminosa está a cargo exclusivamente do Ministério Público Federal, que após formar sua opinius delicti deverá oferecer, ou não, uma denúncia. O ponto aqui, entretanto, é outro. Trata-se de alertar para o fato de que causar abalo à dignidade das mulheres – seja por qual meio for, criminoso, ou ainda que não, censurável – não mais será tolerado no ambiente de trabalho. Essa cultura deve ser recorrente nos programas de conformidade, que se eficientes forem alcançarão o desejado efeito preventivo.

Débora Motta Cardoso – PhD Law. Especialista em compliance e antilavagem de dinheiro. Professora no LLM de Direito Penal Econômico e Compliance do IDP

Originalmente publicado no Jota

Publicado na CompliancePME em 12 de julho de 2022