Por Esther Flesch e Sophia Flesch

Há aproximadamente uma década, os brasileiros acordavam todos os dias com jornais inundados de manchetes sobre operações policiais anticorrupção. No auge da Lava Jato, eram comuns buscas e apreensões, prisões preventivas, quebras de sigilo e outras medidas cautelares. Esse período foi, certamente, decisivo para que o mundo corporativo brasileiro adotasse o tema do compliance no seu cotidiano.

Em agosto de 2023 a Controladoria Geral da União (CGU) realizou um evento em comemoração aos 10 anos da Lei Anticorrupção. O evento reuniu entes empresariais e governamentais para tratar dos avanços trazidos pela nova lei.

Com a promulgação da lei, grandes empresas, órgãos federais, dos estados e grandes municípios passaram a implementar o compliance. O desafio agora é que pequenas e médias empresas e estados e municípios menores sigam este caminho.

Houve diversos processos administrativos e judiciais relativos às violações previstas na lei. Apenas no âmbito federal, as multas aplicadas já somam R$ 1,3 bilhão.

Em retrospectiva ao aniversário da lei, o setor privado também teceu críticas. Algumas das oportunidades de melhoria apontadas são a forma de cálculo da aplicação da multa, que, a depender do segmento, pode gerar desproporcionalidade e a percepção de insegurança jurídica na celebração de acordos de leniência, tendo em vista a multiplicidade de agentes envolvidos.

Todavia, é entendimento geral que estamos diante de um processo histórico de desenvolvimento. Um exemplo disso são as decisões do STF no âmbito da Lava Jato.

Em setembro, o ministro Dias Toffoli anulou todas as provas obtidas em um acordo de leniência celebrado na Operação Lava Jato. A decisão gerou alvoroço: muitos entenderam que a decisão “anulou a Lava Jato” – ou, ao menos, o acordo celebrado pela empresa. No entanto, a decisão não foi tão inovadora quanto se pensa. Já havia naquela Corte decisão na qual o entendimento foi de que referidas provas foram obtidas em razão da contaminação do material que tramitou perante o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba e que, por este motivo, são imprestáveis.

A decisão mostra um amadurecimento na atuação estatal quando o assunto é combate à corrupção, reforçando a importância da conformidade com os procedimentos legais para obtenção e uso de provas. No evento celebrado pela CGU reconheceu-se que a aplicação da Lei Anticorrupção à Lava Jato quando ainda era imatura gerou assimetrias de poder e entendimentos injustos.

Mas não só a Lei Anticorrupção passa por um processo de amadurecimento – o compliance em si também. A integridade nos negócios não mais se resume à não-corrupção. O que se viu em 2023, e que ainda virá em mais peso nos próximos anos, é o alargamento do que se entende por estar em compliance. É preciso que as empresas sejam íntegras em todos os aspectos, e não apenas quando o assunto é corrupção.

Uma empresa que não admite práticas corruptas, mas usa trabalho escravo, infantil, degrada o meio ambiente, seja diretamente ou por meio de sua cadeia de fornecedores, ou mesmo que fraude seus resultados, não alcança o que hoje entendemos por compliance.

Nesse sentido, a CGU e o BNDES assinaram no evento de agosto um Acordo de Cooperação Técnica em que passarão a exigir que grandes empresas (aquelas com faturamento anual superior a R$ 300 milhões) que pleitearem financiamentos junto ao Banco comprovem a implementação de um programa de integridade empresarial que preveja medidas para promoção de direitos humanos e práticas sustentáveis. A expectativa é que bancos privados passem a fazer exigências semelhantes.

Nos últimos anos, o BNDES suspendeu diversas contratações de empréstimos por empresas e pessoas incluídas na “lista suja” do Ministério do Trabalho de empregadores acusados de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão.

Outra medida que evidencia a ampliação do conceito de compliance é o Acordo de Cooperação Técnica celebrado pela CGU e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Este acordo deverá influenciar novos requisitos para a concessão do selo Pró-ética a empresas. Outro indicativo contundente do vínculo indissociável entre direitos humanos e integridade.

Estas medidas demonstram que o Brasil está em sintonia com o restante do mundo. Em 2022 a União Europeia adotou a Diretiva de Due Diligence de Responsabilidade Corporativa. A Diretiva exige que as empresas identifiquem, previnam e eliminem (ou atenuem) os impactos de suas atividades empresariais sobre os direitos humanos e o meio ambiente. Grandes empresas, por exemplo, deverão garantir que sua estratégia de negócios seja compatível com a limitação do aquecimento global a 1,5°C, em conformidade com o Acordo de Paris.

A Diretiva Europeia segue os passos de outras legislações já adotadas em países da Europa, como Alemanha, França, Noruega, Reino Unido, entre outros. A lei alemã de Due Diligence em Cadeias de Fornecimento, aprovada em 2021, exige que as empresas façam jus à sua responsabilidade frente aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente e o direito ambiental, e que garantam a integridade de todas as etapas de seu processo produtivo.

A lei francesa de Dever de Vigilância, adotada em 2017, exige que empresas que operam na França supervisionem suas cadeias de fornecimento, por meio da elaboração, publicação e implementação de um “plano de vigilância”.

Nos Estados Unidos, a Lei de Transparência nas Cadeias de Fornecimentos da Califórnia de 2010, que mais tarde inspirou a Lei de Escravidão Moderna do Reino Unido, foi uma das primeiras legislações a enfrentar o problema da escravidão moderna por meio de obrigações de reporte e transparência.

Apesar dos avanços a níveis nacional e global, vemos que ainda há um logo caminho pela frente. Em fevereiro de 2023, mais de 200 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo à escravidão em colheitas de uva para a produção de vinho em Bento Gonçalves (RS). No mês seguinte, trabalhadores que atuavam na preparação de um famoso festival de música em São Paulo foram resgatados de condições degradantes de trabalho. Em ambos os casos, a mão-de-obra era terceirizada.

Até mesmo grandes empresas têm dificuldades de garantir a integridade em suas cadeias de fornecimento. Quatro fazendas de café fornecedoras de uma grande rede foram flagradas cometendo violações trabalhistas, em situação análoga à escravidão.

Outro caso que não se pode olvidar e de grande repercussão é o de uma gigante do varejo que entrou em recuperação judicial. Mais uma vez, fica clara a importância do alargamento da concepção do compliance. Nesse caso, a integridade da governança empresarial, com a transparência e o seu fortalecimento sob a perspectiva do investidor, especialmente os investidores do mercado pulverizado.

O ano de 2023 movimentou o cenário do compliance no Brasil e no mundo. Certamente temos muito o que esperar de 2024.

*Esther Flesch, sócia do escritório Miguel Neto Advogados; referência em compliance, tendo atuado nos principais acordos de leniência envolvendo companhias brasileiras no Brasil e EUA; mestre em Direito – University of Michigan Law School. Doutora pela USP

*Sophia Flesch, advogada associada de Miguel Neto Advogados; bacharel pela PUC-SP; especialista em compliance pela FGV-SP, com atuação em compliance empresarial, fraudes, investigações e government enforcement

 

Publicada originalmente no Estadão

Publicado na CompliancePME em 15 de janeiro de 2024