Whistleblower: um termo em alta tanto no cenário norte-americano, com as recentes propostas de emendas da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) às regras de seu whistleblower program, como no âmbito brasileiro, com a publicação da ainda desconhecida Lei Federal 13.608/18.

Essa nossa Lei Federal 13.608/18 autoriza os entes federativos brasileiros a estabelecer formas de recompensa a quem oferecer denúncias com informações úteis à prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos, conforme descrito no artigo 4º da referida nova lei.

Mas por que apostar no estrangeirismo do termo whistleblower em pleno território nacional? Parto da opinião que, por carência de maturidade ética, não há no ordenamento jurídico brasileiro instituto similar e, portanto, “importá-lo” — preservando a sua essência — implica em evitar traduzir o termo, aplicando-o em situações envolvendo a lei brasileira, quando de seu enforcement. Em uma tradução literal, teríamos o termo “assoprador de apito”, cabendo aplicação também das expressões “denunciante” e, ainda, “delator”, porém tais expressões não refletem a real natureza ou peculiaridades do whistleblower e podem gerar um grande equívoco.

Ressalto, com veemência: o whistleblower não se confunde com a figura do delator premiado aqui na nossa terra de “lava jatos”…

Em linhas gerais, a troca de favores inerente à delação premiada aqui no Brasil não está presente nos casos de whistleblowing à moda norte-americana. Sob a ótica dos Estados Unidos, presume-se que o whistleblower seja um reportante de boa-fé, que não participou dos atos ilícitos praticados e voluntariamente traz ao conhecimento das autoridades informações úteis sobre wrongdoings(malfeitos!) que violem normas federais norte-americanas de valores mobiliários, especialmente o muito conhecido Foreign Corrupt Practices Act(FCPA).

Para se tornar elegível ao programa de recompensas, a informação ofertada deve resultar em uma ação da SEC que gere uma sanção monetária superior a USD 1 milhão. Caso o reportante tenha envolvimento com o ato ilícito, na maioria dos casos, estará impedido de realizar uma denúncia à SEC. Contudo, caso seu relato seja aceito, os benefícios serão significantemente reduzidos. No mais, o whistleblower pode denunciar fatos pretéritos, atuais ou iminentes.

Nesse sentido, o relato do whistleblower consiste em ato ético, cidadão e, sobretudo compliant. A lei brasileira é ainda muito crua e depende de regulamentação pelos entes federativos. No entanto, acredito que no Brasil a metodologia a ser aplicada será similar à acima descrita.

Por outro lado, vale lembrar que o instituto da delação premiada está atrelado à confissão da autoria ou participação em ilícitos penais (dano já causado pelo indivíduo) e à troca de informações valiosas para o estado com o intuito de redução da pena. Mas, Brasil é Brasil, Estados Unidos são Estados Unidos.

Com isso em mente, temos alertado nossos clientes sobre possíveis mudanças no programa de recompensas da SEC, incentivando-os a aprimorarem os seus controles internos aqui no Brasil, bem como fortalecer seus canais de denúncia.

Com o advento da nossa Lei Federal 13.608/18, acompanhar o programa de recompensa da SEC torna-se crucial para que se possa compreender e, de certa forma prever, a potencial utilidade na prevenção, repressão e apuração de crimes ou ilícitos administrativos, espelhando-se na experiência norte-americana torcendo para que o programa brasileiro se desenvolva com o mesmo vigor.

Sendo assim, levanto algumas questões relevantes quanto à evolução do assunto nos Estados Unidos. Em 28 de junho de 2018, a SEC publicou uma série de propostas de mudanças às regras de seu programa de recompensa. Elenco as principais:

  • a SEC propõe tornar apto a receber recompensas o whistleblower cuja denúncia resultar em Non-Prosecution Agreements (NPAs) e Deferred Prosecution Agreements (DPAs) firmados com o Departamento de Justiça Americano (DOJ) e outros acordos, inclusive extrajudiciais, firmados com autoridades competentes que gerem arrecadações monetárias;
  • para os casos em que a recompensa a ser paga aos whistleblowers for igual ou inferior a US$ 2 milhões, a SEC propõe nova regra que concede à própria SEC a prerrogativa de aumentar o valor da recompensa em até 30%, visando incentivar novas denúncias. Vale notar que, em casos envolvendo relatos advindos de colaboradores da instituição denunciada, um dos critérios para que se aumente o valor da recompensa é a participação do whistleblower nos programas internos de compliance da empresa. Este último, embora haja omissão legislativa, tem sido adotado pela SEC para contribuir e incentivar a utilização dos controles internos de compliance, a colaboração em investigações internas e a comunicação de fatos ao canal de denúncias da empresa pelo whistleblower em conjunto com a comunicação a órgãos oficiais;
  • limitação da recompensa a um valor máximo de US$ 30 milhões quando o montante recuperado exceder US$ 100 milhões. A SEC não poderá, no entanto, reduzir a recompensa a um valor inferior a 10% do montante arrecadado em decorrência da denúncia. De acordo com a SEC, estipular um teto para o valor da recompensa é questão de interesse público e permite que os objetivos do programa não sejam desvirtuados;
  • a SEC também busca evitar desvirtuamento do programa ao propor a banição de um proponente do programa caso tenha feito três ou mais denúncias levianas, sem lastro em um mínimo de provas ou evidências;
  • por fim, a SEC propõe uma nova regra para se adequar à recente decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Digital Realty Trust, Inc v. Somers1. A proposta visa esclarecer que o whistleblower somente receberá proteção contra retaliações caso tenha feito a denúncia à SEC com observância das formalidades necessárias. Logo, indivíduos que façam a denúncia apenas internamente ao programa de compliance da empresa não receberão tal proteção, ainda que os fatos cheguem ao conhecimento da SEC.

Não restam dúvidas de que a participação cidadã e a realização de denúncias são inerentes e até mesmo peças-chave no combate à corrupção. O cenário brasileiro atual demonstra que o país carece de maturidade ética para aceitar a denúncia (verídica e fundamentada) como um ato de boa-fé e não como uma quebra de confiança ou ato de “dedo-duro”.

É certo que ainda temos um longo caminho a trilhar até alcançar o nível de sofisticação norte-americano, no entanto, esperamos que a nova Lei Federal 13.608/18 venha para mudar essa realidade. No entanto, caso o normativo não seja acompanhado de avanços éticos e organizacionais, temo que ela possa estar fadado ao destino de lei que “não pega”.

Em apertada síntese, a lei brasileira autoriza os Estados a criarem ou designarem um serviço telefônico para o recebimento de denúncias e o estabelecimento pelos entes federativos, no âmbito de suas competências, das formas de recompensas pelo oferecimento de informações que contribuam com as investigações policiais e para a prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos.

O oferecimento de recompensa financeira e, principalmente, a possibilidade de premiação “em espécie” são aspectos inovadores na legislação brasileira.

A nossa nova lei deixa um expectativa de regulamentação para sanar questões como: (i) quais serão os procedimentos adotados para apurar as denúncias e se haverá uma padronização de critérios de avaliação; (ii) quais serão as recompensas; (iii) quais informações serão consideradas úteis; (iv) quem poderá oferecer informações e receber recompensas; (v) se será levada em consideração a participação em programas de compliance interno; e (vi) como será realizado o pagamento em espécie previsto na norma, dentre outras questões.

Ainda, sabe-se pouco e espera-se muito! No entanto, da mesma forma em que a nossa lei anticorrupção foi inspirada no FCPA, existe expectativa de que o programa de whistleblower brasileiro vá também se inspirar na experiência norte-americana, seguindo os parâmetros da SEC. Basta descobrimos se haverá efetivo interesse e amadurecimento ético no nosso país como vemos no país do patrulhamento da FCPA.


1 Decisão da Suprema Corte dos EUA, em 21 de fevereiro de 2018, no sentido de que as previsões de proteção contra retaliações da Dodd-Frank Act se aplicam apenas quando o whistleblower realizar a denúncia das violações diretamente à SEC. Paul Somers, ex-vice-presidente da Digital Realty Trust no período de 2010 a 2014, alegou ter realizado denúncias de violações após os quais foi demitido. Somers então processou a Digital Reality alegando estar protegido pela Dodd-Frank Act. Na decisão em comento, a Suprema Corte firmou o entendimento de que por não ter reportado as violações à SEC, Somers não se enquadraria no conceito de whistleblower e, portanto, não teria direito à proteção.

Esta notícia foi publicada originalmente no ConJur.

Publicado na CompliancePME em 1 de setembro de 2020